A CULTURA TÉCNICA E O USO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO

 

Jackeline Spinola de Freitas

jspinola@ufba.br

Mestranda em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Faculdade de Comunicação da UFBA

Resumo:

Este artigo é uma reflexão sobre a necessidade de uma cultura técnica para utilização do potencial de comunicação oferecido pelas novas tecnologias, em especial a Internet. As tecnologias da informação têm, a cada dia, oferecido novos dispositivos, novos aparatos e para que possamos nos beneficiar deles, é importante dissolver a fronteira existente entre o homem e a máquina. A cultura humana não pode se constituir como um sistema de defesa contra as técnicas. As máquinas e os homens devem ser vistos como seres complementares e interdependentes pertencentes à natureza. É necessário solicitar novas propostas educacionais, compatíveis com esta condição atual, para que possamos incorporar a técnica à cultura eliminando assim nossos conflitos com a tecnologia.

 

 

1. A CULTURA TÉCNICA

"Pensar a máquina é pensar o humano" Marc Favaro.

Vivemos hoje numa época em que os avanços na área tecnológica ocorrem cada vez mais rápidos. Atualmente podemos dizer que é praticamente impossível não participar de algum processo que envolva o uso da técnica e podemos perceber que estas novas tecnologias e os novos dispositivos de comunicação têm alterado muito mais rapidamente o modo de vida do homem, sua estrutura de pensamento, seu modo de apreensão do conhecimento e suas relações sociais.

Apesar deste contexto e da consciência da irreversibilidade deste avanço, notamos que existe uma grande resistência por parte das pessoas em incorporar estas mudanças, que geralmente trazem benefícios, à vida diária.

Esta resistência pode ser traduzida num sentimento misto de encantamento e temor em relação ao uso da tecnologia pelo homem: benéficios e comodidade que a técnica pode trazer versus receios que o homem tem, de que a máquina irá substituí-lo. LEMOS (1999) cita que:

"(...)Alguns insistem em identificar a técnica como um inimigo número 1, como o estrangeiro, como a encarnação mais fiel do racionalismo instrumental e desumanizante, dentro do paradigma da modernidade. (...) Uma instância autônoma e exterior ao homem". (LEMOS,1999)

SIMONDON (1969), no seu livro Du mode d’existence des objets techniques, classificado como um estudo da nova forma de compreender a tecnologia, apesar de escrito a mais de 30 anos também faz críticas à relação do homem com a técnica. O autor acredita que existe uma recusa do homem em admitir mais importância à tecnologia ou à técnica e também uma dificuldade do mesmo em compreender que o objeto técnico individualizado corresponde diretamente à dimensão humana, que o objeto técnico não domina o homem e nem o homem domina o objeto técnico, que o objeto técnico é um prolongamento das mãos do homem, ou um sistema protético, como na tecnologia dos componentes, o que faz com que eles, homem e objetos técnicos, entrem numa espécie de dialética.

O autor diz ainda que a cultura do homem comporta duas atitudes contraditórias para com os objetos técnicos: de um lado a cultura os trata como pura reunião de matéria, desprovida de verdadeira significação e apresentando somente uma utilidade, um valor de uso. Por outro lado, ela supõe que estes objetos são também como robôs, que são animados de intenções hostis para com o homem, que representam para ele um permanente perigo de agressão, de insurreição.

Esta forma de se relacionar com a técnica deve-se ao fato do homem nunca ter conseguido compreender o funcionamento do objeto técnico e esta falta de compreensão ter levado a uma total separação entre os objetos técnicos e a sua cultura humana. Desta forma, esta cultura não inclui as máquinas, o que faz com que ela seja inadequada e não representativa, ficando as máquinas regidas por uma cultura que não foi elaborada de acordo com elas, uma cultura na qual elas estão ausentes.

Para corrigir esta incompreensão, faz-se necessário a incorporação dos objetos técnicos à cultura, e a primeira condição para que isso ocorra é a consciência de que o homem não é nem inferior e nem superior aos objetos técnicos. Ele precisa compreender, aprender e conhecer os objetos técnicos, mantendo uma relação social com eles. As técnicas então, após compreendidas deixariam de escravizar o homem, como outrora faziam, como podemos perceber nas palavras de SIMONDON (1969):

"O aspecto da evolução técnica se modifica no século XIX com o nascimento dos indivíduos técnicos completos. Como estes indivíduos substituem apenas os animais, a perturbação não é uma frustração. A frustração do homem começa com a máquina que o substitui, com o equipamento das novas fábricas".(...) "A angústia nasce de transformações que trazem ruptura nos ritmos do cotidiano". (Simondon, 1969:115-116)

A atual oposição entre a cultura e a técnica resulta do fato que o objeto técnico é considerado como idêntico à máquina e a cultura não compreende a máquina. Esta cultura é inadequada à realidade técnica, uma vez que considera a máquina como um bloco fechado e independente. A cultura deve incorporar os conjuntos técnicos conhecendo sua natureza, para poder reger a vida humana de acordo com estes objetos técnicos. A cultura deve incorporar ao seu conteúdo o conhecimento das técnicas.

É importante que o homem possa, cada vez mais, se aproximar dos objetos técnicos, para que a relação entre eles se torne estável e válida. Para isto é importante que o homem conheça primeiro o objeto técnico em si mesmo, já que o homem também é um artifício formado pela cultura, que lhe dá significações e valores.

A aproximação do homem com os objetos técnicos faz aumentar a relação de familiaridade deste com a tecnologia, para que assim, estando mais aproximado dela, a técnica torne-se naturalizada. Este período de naturalização de uma técnica, SIMONDON (1969) chama de período de relaxação, onde o objeto técnico passa a fazer parte do homem, é incorporado ao seu dia-a-dia, muitas vezes sem que se tome consciência da sua onipresença. No limite deste período de relaxação, a naturalização do objeto técnico poderá ser seguida de um avanço técnico, dado o surgimento de novas necessidades pelo uso da técnica.

A tecnologia precisa fazer parte das relações humanas na sociedade, para que seja possível investigar a evolução das máquinas do mesmo modo que se pode analisar a série evolutiva dos seres vivos, compreender que a evolução do homem caminha junto com a evolução tecnológica, e que ela é um dos agentes de transformação das sociedades, através das suas diferentes formas, usos e implicações.

O homem necessita compreender que a cultura rege a relação deste com o mundo e a relação deste consigo próprio. Se a cultura não incorporar a tecnologia, ela não pode conduzir a relação do homem com o mundo, independente do momento de grande avanço tecnológico que estamos vivendo hoje. A cultura precisa ser contemporânea da técnica.

Agora que já expomos a necessidade da cultura técnica para compreender os objetos técnicos, e a separação que existe entre o homem e a técnica, utilizaremos como exemplo uma das áreas de maior avanço tecnológico atualmente que é a informática, e dentro dela, a Internet, área em enorme expansão nos últimos tempos.

 

 

2. O USO DA INTERNET

 

Arriscamos dizer que atualmente é impossível não observar as alterações irreversíveis que a Internet vem causando na nossa sociedade transparecendo até mesmo que quem não estiver presente na rede de agora por diante estará totalmente "excluído" ao que LEMOS (1999) poderia traduzir em "I link therefore I am", tamanha é a dimensão que a ela vem tomando na nossa vida cotidiana.

No princípio da Internet, os sites educacionais eram os mais acessados, mas hoje, são os que oferecem conteúdo, comunicação, "ambiente de comunidade" e, também, como última tendência, comércio. Atividades como enviar e receber e-mails, obter informações sobre lazer, notícias gerais e negócios crescem atualmente no mundo on-line e estão influenciando na forma como nos comunicamos. Além de percebermos a importância da comunicação na era digital, observamos que para que possamos nos beneficiar das facilidades que nos são oferecidas na Internet, é preciso que tenhamos um certo conhecimento técnico, mesmo parco, sobre computadores, redes, programas, provedores de acesso, etc. Não é foco desta reflexão, analisar a falta de acesso de muitos a esta tecnologia devido às condições econômicas. Estamos aqui considerando aqueles que possuem acesso a Internet ou pelo menos condições de acesso à mesma. Muitas são as estórias contadas pelos analistas de suporte de empresas e provedores de acesso a Internet que nos leva a crer que atualmente muitas pessoas, mesmo possuindo os equipamentos básicos, não dispõem do conhecimento necessário para utilizá-la. BARIZELLI (2000) acredita que:

"Existe uma baixa cultura informática no Brasil. A malfadada "reserva do mercado de informática" fez com que pelo menos duas ou três gerações de brasileiros ficassem à margem da evolução que ocorreu no mundo desenvolvido." (Barizelli, 2000)

A carência deste conhecimento técnico pode ser classificada em vários níveis, pois se existem aqueles que não utilizam computadores ou a Internet, por total falta deste conhecimento, existem também os que já a utilizam, dominam o uso dos serviços de chats, e-mail e consultas na Web, mas também se mostram incapazes de superar barreiras maiores, que exigem maior embasamento técnico, como, por exemplo, confiar nos sistemas seguros de compra pela rede, ou utilizar os serviços de Internet Banking. Só para quantificar, um recente estudo realizado pela Ernst & Young na Brasil revelou que 68% dos internautas brasileiros têm como maior preocupação nas compras on-line o uso do cartão de crédito. Parte deste receio pode ser atribuído também à larga disseminação com que convivemos hoje, da cultura Hacker, que afirma que a qualquer momento, seus dados confidenciais poderão ser acessados, roubados e utilizados em benefícios de outros.

O avanço tecnológico tem papel decisivo a desempenhar no aprimoramento de programas capazes de ampliar a margem de segurança nas transações eletrônicas e desarticular o vandalismo digital, mas somente isto não é suficiente para resolver os receios do homem.

Para citar outros casos, não raro também vemos pessoas confundindo um endereço de página, como por exemplo www.ufba.br, com um endereço de e-mail como jspinola@ufba.br. Assim como aconteceu com o surgimento da televisão e o deslumbramento das pessoas defronte dos aparelhos, questionando-se com espanto de onde estavam vindo aquelas imagens, as pessoas hoje espantam-se com as inúmeras informações disponíveis na rede e com a velocidade com que as informações são trocadas.

Uma brincadeira feita por uma propaganda na TV ilustra bem como as diferentes gerações lidam com a tecnologia. Nesta propaganda, é supostamente uma criança de não mais do que seis anos, filha de um casal, que resolve todos os problemas relacionados ao uso da tecnologia da Internet. Vemos que aqueles nascidos na geração do videogame, do joystick, têm muito mais facilidade em lidar com estas novas tecnologias do que os das demais gerações. Para as crianças o computador é um equipamento de fácil manipulação, tamanha é a naturalização ou naturalidade deste objeto técnico para elas.

Acreditamos que esta maior aceitação e naturalidade das novas gerações frente às novas tecnologias são explicadas pelo maior contato que estas novas gerações têm com a técnica e às pequenas, mas significativas mudanças nas "sub-culturas" locais, que estão transformando o comportamento do homem e a relação social entre o homem e os objetos técnicos, mas muito ainda há por fazer para que estas tecnologias se tornem mais próximas do homem e idealmente façam parte da sua cultura.

Estamos verificando, com grande satisfação, que as novas tecnologias estão favorecendo a apropriação cotidiana da técnica, fazendo ver aos indivíduos que elas podem e devem ser usadas em favor do homem.

 

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Felizmente o humano e a técnica estão sendo considerados cada vez menos distantes um do outro e a idéia da máquina associada ao artificial, aos poucos está se esvaindo. A oposição entre cultura e técnica não é mais admissível. Cada vez mais, a separação e a exclusão da técnica do universo da cultura é confirmada como sendo uma perspectiva equivocada.

Para Simondon (1969), uma cultura técnica não pode se constituir sem o desenvolvimento de um certo tipo de sensatez sobre o objeto técnico e sua tecnicidade e a oposição entre técnica e cultura durará até que a cultura descubra que cada máquina não é uma unidade absoluta, mas somente uma realidade técnica individualizada, aberta de acordo com dois caminhos, o da relação dos elementos e o das relações interindividuais junto com a técnica.

Desta forma, entendemos que o homem precisa se aprofundar no universo dos objetos técnicos para superar as atuais barreiras que ele enfrenta no lidar com estes objetos, que muitas vezes impedem a extensão, evolução e ampliação dos limites do homem.

De uma maneira geral, pode ser utópico pensarmos que, com a atual educação oferecida nas escolas, os indivíduos possam adquirir uma cultura técnica necessária para que eles possam acompanhar a evolução tecnológica que bate às portas, mas é importante que possamos pensar que urge um investimento hoje, novas propostas educacionais, para que, mesmo no longo prazo, no futuro nós possamos usufruir sem medos de todos os benefícios que o conhecimento e o uso dos objetos técnicos e da tecnologia podem nos trazer.

Será cada vez mais necessário compreender e aceitar a tecnologia que faz parte atualmente das relações do homem na sociedade, através de aprofundamento na técnica e permitindo a inserção desta na cultura. Este aprofundamento deve se dar através de uma educação que envolva a técnica, para que, a cada dia, o homem possa estar mais próximo a ela e desta forma possa incorporá-la definitivamente e continuamente à sua cultura.

 

 

4. BIBLIOGRAFIA

 

COUTO, Edvaldo Souza. A satelitização do corpo - Uma estratégia pós-humana de sobrevivência. <http://www.pucrs.br/compos/>

INFOEXAME. <http://www2.uol.com.br/info/aberto/infonews/012001/11012001-5.shl> (11/01/2001)

LEMOS, André. <http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/cvirtual.html> <http://www.facom.ufba.br/pesq/cyber/lemos/index.html> (27/09/2000).

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

MORAES, Dênis. A ética comunicacional na Internet. <http://www.uff.br/mestcii/denis1.htm>(11/10/2000)

SIMONDON, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. França: Aubier, 1969.

Resource Center for Cyberculture Studies. <http://otal.umd.edu/~rccs/> (27/09/2000)

Revista e-commerce. Entrevista com profº Nelson Barizelli – USP-SP <http://www.microsoft.com/brasil/comercio/revista/num003/entrevista.stm> (08/10/2000)