Bazin e Eisenstein: uma comparação

Bruno Cola Greggio*

Introdução

O que trazemos aqui para a discussão. é um pequeno conjunto de apontamentos iniciais e questões sobre as teorias do cinema, partindo de sua dualidade clássica, e culminando com o cotejamento de dois teóricos extremamente produtivos e profícuos, ambos de influência decisiva e recorrentes, ainda hoje, quando se discute o cinema e o audiovisual em geral: Bazin e Eisenstein. E, posteriormente, observaremos como se têm comportado as contribuições desses dois autores frente a nova imagem eletrônica. acerca do audiovisual é um pequeno focalizadas nos trabalhos de Serguei Eisenstein e André Bazin

A dualidade clássica do cinema:

Sempre que procuramos interpretações que dêem conta do fenômeno cinematográfico, terminamos por esbarrar em oposições históricas, técnicas ou mesmo interpretativas, em geral mutuamente excludentes. Conforme Tom Gunning, ao comentar a reação do escritor russo Máximo Gorki a uma sessão de cinema:

O cinema sempre oscilou entre dois pólos, o de fornecer um novo padrão de representação realista e (simultaneamente) o de apresentar um sentido de irrealidade, um reino de fantasmas impalpáveis

Na sua gênese, o cinema freqüentemente se vê dividido entre dois personagens, de índoles, intenções e práticas antagônicas e que trouxeram contribuições diversas para o desenvolvimento dessa arte. Esses dois personagens não são outros senão Louis Lumière e Georges Méliès, identificados, respectivamente, à "representação realista" mais simples e ao "sentido de irrealidade" puro. Depois de suas fundações, todos os cineastas não teriam feito outra coisa senão optarem por um ou outro partido, o que, em última instância, significaria um confronto entre a realidade e a ficção, grosso modo. Georges Sadoul, ao descrever a história do cinema, salienta bem as contribuições de um e de outro: Lumière, junto com seus operadores de cinematógrafo , criaram "as atualidades, o documentário, a reportagem", e mesmo "a montagem desenvolveu-se com as exigências das grandes reportagens fotográficas". Méliès, no entanto, aproveitará a rápida decadência do gênero criado por Lumière e desenvolverá os procedimentos de trucagem, usada como um fim em-si, bem como empregará "sistematicamente no cinema a maior parte dos meios do teatro".

Da mesma forma, a teoria parece ter acompanhado esse mesmo dualismo, dividindo, cada qual para seu lado, "formalistas" e "realistas", caracterizados principalmente por defenderem o status artístico do cinema enquanto transformador do "caos e ausência de significado do mundo numa estrutura e num ritmo autosustentados" e relacionar os principais problemas do cinema com o procedimento da montagem, no caso dos primeiros. Aos segundos, associa-se o "senso da função social da arte" em oposição aos "filmes fabricados em laboratório" (como geralmente classificavam os filmes formalistas). Simplificando ainda mais, diríamos que os formalistas caracterizam-se por uma interferência estilizante nos procedimentos produtivos (especialmente na montagem) enquanto os realistas demonstrariam justamente o contrário: um mínimo possível de interferência na produção (em todos os aspectos, mas sobretudo na montagem).

Não obstante essas oposições, há um ponto em que tanto "realistas" ou "industriais" quanto "ilusionistas" estão unidos durante todo o desenvolvimento histórico do cinema: a busca da síntese do movimento pela projeção na sala escura, ou, em outras palavras, do cinema enquanto potencialidade de criação. Neste sentido, Arlindo Machado identifica, ao explorar as origens nebulosas da sétima arte, duas posturas em relação à imagem fotográfica e cinematográfica: por 0um lado, os cientistas (como Marey, Muybridge e Lande), mais interessados em produzir "diagramas analíticos" para revistas científicas com os recursos da imagem fotoquímica e sem qualquer tipo de interesse artístico em relação a esse novo recurso; por outro, "ilusionistas como Reynaud e Méliès e industriais ansiosos por tirar proveito comercial da ‘fotografia animada’, como Edison e Lumière [que] estavam mais interessados no estágio de síntese efetuada pelo projetor, pois era somente aí que se podia criar uma nova modalidade de espetáculo, capaz de penetrar fundo na alma do espectador, mexer com seus fantasmas e interpelá-lo como sujeito". Somente nestes últimos (ilusionistas e industriais) podemos vislumbrar ancestrais trabalhadores de um "novo sistema de expressão" e linguagem.

Observando essas dualidades e esse "encontro criativo" entre as duas tendências do cinema é que nos propomos analisar os textos de Bazin e Eisenstein, que seriam representantes influentes do "realismo" e do "formalismo", respectivamente. Desde já, porém, observamos a incongruência em colocar esses dois teóricos no mesmo patamar de Lumière e Méliès, visto que as teorizações, princípios e práticas defendidas por aqueles são infinitamente mais complexa que as realizações destes. O realismo de Bazin é infinitamente mais amplo que o de Lumière e a montagem eisensteiniana não procura justificar-se por si, como as trucagens de Méliès, efeitos destinados mais a impressionar, que já tiveram sua função esgotada na experiência do cinema dado o seu caráter fungível e saturável para a percepção do público.

Os dois marcos das possibilidades cinematográficas

Em geral, quando se fala numa oposição entre Eisenstein e Bazin, toma-se, invariavelmente, como ponto de partida a montagem, por esta ocupar "um lugar central em seus sistemas". De fato, a montagem toma com freqüência a atenção dos dois teóricos. O que os distinguiria, então, seria uma maior (Eisenstein) ou menor (Bazin) valorização arbitrária desse processo compositor do cinema, ou apenas "uma questão de ideologia". Todavia, consideramos (muito embora a bibliografia em que nos apoiamos seja limitada) resumir a diferença entre os dois como uma questão ideológica uma perspectiva um tanto ou quanto limitada, ou mesmo perigosa, pois nos levaria a crer que ambos trabalham com um conceito idêntico de montagem e ignorar que às vezes as funções desta podem se confundir no entendimento de um ou de outro, além de descontextualizar seus pensamentos, o que pretendemos mostrar mais adiante. De fato, como bem ressalta Antonio Costa, as duas "operações contextuais" que envolvem a montagem, a seleção e a combinação (ou "cortar e colar"), mudam sensivelmente de sentido conforme a língua que se usa para expressá-las: enquanto em italiano se usa a mesma palavra para ambas, temos, em francês, o termo découpage para a primeira e montage para a segunda e ainda, em inglês, cutting e editting ou montage.

A língua francesa dá muito claramente a idéia de que a função seletiva da montagem começa já na fase do roteiro (...). Esse termo [o découpage francês], que acabou sendo adotado por outras línguas, incluindo a nossa, remete explicitamente para a idéia de cortar, recortar, operando inclusões e exclusões: em relação à indefinida continuidade da cena, "recortam-se" os momentos significativos do ponto de vista narrativo e visual.

Este entendimento da montagem leva Costa a considerar como função da montagem produzir no espectador uma "impressão de unidade (de lugar)", "em que cada plano já é uma forma de organização de relações espaciais"; e "de continuidade (de tempo)", que "concerne tanto à inteira estrutura do filme quanto às seqüências singulares".

Uma oposição histórico-estética?.

Cabe-nos agora, antes de tudo, caracterizar melhor os homens de quem estamos falando.

Ambos estão próximos, de forma patente, da produção cinematográfica de seu tempo e são, cada qual a seu modo, pensadores dessa produção e do fazer cinematográfico em si, bem como do papel social que essas produções cumprem ou deveriam cumprir. Partem, contudo, de pontos de vista diferentes quanto a essa mesma arte: Eisenstein é o cineasta teorizador de sua arte - não só de suas próprias obras -, enquanto Bazin o espectador arguto, conhecedor da técnica e de filosofia, que sofre os efeitos do cinema e os analisa valendo-se de seu conhecimento, sua reflexão e imaginação. Por isso, há no primeiro a ênfase na produção "com os olhos na platéia" (ou com um olho na platéia e outro na obra), enquanto o outro é o olho treinado, pensante, da platéia enquanto crítico. Aliado a isso, lembre-se o papel que o primeiro desempenhou como importante polemizador no primeiro cinema russo e a extrema influência que o segundo exerceu sobre produtores de seu tempo e seguintes, como Jean Renoir e Cocteau, além de toda a nouvelle vague (e todos os agremiados em torno ao Cahiers du Cinéma, revista fundada por Bazin), bem como o neo-realismo italiano.

Algo que não pode passar despercebido é o contexto estético em que os dois formulam seus pensamentos e a índole transgressora, ou melhor, criativa, de suas críticas, nunca restritas a uma consideração essencialista da técnica, mas entendendo-a histórica e esteticamente, num tempo e num contexto político, o que permitiu a ambos uma abertura às inovações tecnológicas ocorridas em seus tempos, especialmente no caso do cinema sonoro. Bazin e Eisenstein, imersos em ambientes diferentes de produção , atentos à pragmática, ao uso das imagens, ás técnicas, às soluções estéticas, construíram suas posições quanto a certo uso ou tecnologia ocupados, antes de tudo, em colocar alternativas às saturações perceptivas de suas épocas. Neste sentido, são conhecidas as controvérsias de Eisenstein com o naturalismo do Teatro de Moscou que impulsionaram sobretudo seus primeiros escritos e conceitos em torno da montagem de atrações, uma alternativa revolucionária baseada em espetáculos populares (circo, music hall) para a sociedade revolucionária russa do início do século passado.

O que incomodava Eisenstein nos filmes que via era a ineficiência (...). A platéia olhava para os eventos cinematográficos exatamente como olhava para os acontecimentos cotidianos, tornando o cineasta um mero canal através do qual a realidade podia ser reproduzida(...). ‘O teatro de Arte de Moscou é meu inimigo mortal’, disse, por conta de sua preocupação com uma réplica fiel da realidade.

Bazin, da mesma forma, lutava por superar a profusão de "imagens abstratas" que povoava sua época:

Malraux, Pudovkin e Eisenstein dizem todos explicitamente que sem a montagem o cinema não é uma arte. No início de sua carreira, Bazin tornou clara sua posição de que esse ‘célebre julgamento estético de Malraux (...) foi momentaneamente frutífero, mas suas virtudes se exauriram. Chegou a hora de redescobrirmos o valor da representação pura do cinema’

Certamente, observar a análise que cada um dos teóricos fez de seu tempo evidencia melhor essa postura e esse convergência criativa: "assim , por volta de 1938, os filmes eram, de fato, quase sem exceção, decupados segundo os mesmos princípios". O mesmo período, em Eisenstein, parece corresponder à banalização das discussões sobre a montagem e o risco de o cinema soviético descambar para os padrões griffithianos definitivamente: "houve um período do cinema soviético em que se proclamava que a montagem era ‘tudo’. Agora estamos no final de um período no qual a montagem foi considerada como ‘nada’", o que fez com que muitos criadores esquecessem os objetivos e funções fundamentais da montagem, "a necessidade da exposição coerente e orgânica do tema, do material, da trama, da ação, do movimento interno da seqüência cinematográfica e de sua ação dramática como um todo. Sem falar no aspecto emocional da história...". Em ambos há um comportamento muito próximo quanto à realização cinematográfica: não à banalidade do status quo estético (que, principalmente em relação ao autor de "Couraçado Potenkim" na época referida, sinalizava também um status quo político), às escleroses da produção de seus tempos. Nesse sentido, tanto quando Bazin defende que não haja indício de manipulação na imagem, quanto quando Eisenstein fala de uma construção/composição/montagem que consiga organizar uma obra em si e em relação à platéia, tem-se a defesa de um objetivo psicológico ou mental e também estético da obra para com o espectador. Resumidamente, ambos defendem, de fato, práticas que, à primeira vista, se contrapõem, mas também, de alguma forma, o encanto da imagem cinematográfica - culmine ele com uma tomada de posição ou com uma compreensão do mundo... Os dois, portanto constituem e constróem o conjunto de possibilidades sígnicas (ou de linguagem) do cinema, e, logo, não podemos dizer que suas idéias estéticas e seu entendimento do cinema enquanto linguagem, suas intuições, sejam, a priori, de todo opostas..

As maiores contribuições desta comparação, organizamo-las em três tópicos que, a nosso ver, sintetizam bem as qualidades e características que detém a imagem audiovisual cinematográfica entendida entre esses dois marcos-teóricos sobre os quais nos debruçamos. São eles:

De uma forma geral, tanto Eisenstein quanto Bazin nos apresentam cinema como uma arte impura ou que, pelo menos, tem a ganhar com a impureza, pois mantém relações com as outras formas de arte tradicionais, sendo ele uma síntese qualitativa destas, com o poder mesmo de aproximar-se delas e mesmo absorvê-las em obras individuais, fabricando novos gêneros sem perder sua especificidade e sem destruir essas mesmas artes. Em outras palavras, visto no conjunto das artes, o cinema é tanto a sua síntese quanto detêm um certo poder de análise, de descobrimento dessas mesmas artes.

O teatro marca tanto uma separação quanto uma aproximação entre ambos neste quesito: em Eisenstein temos, de início, a ênfase numa autonomia progressista do cinema, marcada sobretudo por uma vontade de superar a estética naturalista do Teatro de Moscou, suas "convenções sem eficácia" para a platéia, além de legitimar a nova arte ("uma arte que toma os elementos de todas as outras, bem como ultrapassa seus limites"), o que, por vezes, parece lhe dar um caráter "separatista" do cinema em relação também às outras artes (e principalmente ao teatro), coisa que não seria correto afirmar, vez que boa parte do desenvolvimento de sua obra tem seus germes no teatro realizado por ele no Proletkult (além de sua própria formação como gráfico). Ademais, sua principal ocupação é com a constituição do cinema como arte, lhe interessa "o que só pode ser criado com os meios do cinema". Quer descobrir o que torna o cinema uma arte específica, o que culmina em meados da década de 30, quando a discussão sobre a montagem, seus métodos, toma lugar central. Baseia-se na comparação com outras artes. Por exemplo, se na literatura Púchkin, Gogol, Maiakovski e Gorki são valorizados por serem "mestres do discurso e da palavra", e não "mestres contadores de histórias", um cineasta poderá ser considerado um mestre se for exímio em quê? O que devemos observar, numa obra cinematográfica, para dizermos que é uma grande obra cinematográfica? Um pouco mais a frente, em seu artigo "Realização" (publicado em "A forma do filme", 1939), essa comparação se tornará mais madura, e um reconhecimento das contribuições das várias artes (bem com sua ultrapassagem de limites) será feito. Então, pondo os "pingos nos is", o cinema é "um palco tão perfeito de desenvolvimento de todas as artes fundidas em uma", e portanto, estudando-o, poderemos "apreender as leis fundamentais da arte - leis que até agora eram como uma colcha de retalhos" esgarçada entre os arsenais isolados das diferentes artes. "Assim, o método do cinema, quando totalmente compreendido, nos capacitará a revelar uma compreensão do método da arte em geral". Portanto, o cinema é "uma arte genuinamente sintética, uma arte de síntese orgânica em sua própria essência, não um ‘concerto’ de artes coexistentes, contíguas, ‘ligadas’, mas na realidade independentes".

Bazin, escrevendo numa época em que a autonomia artística do cinema já está assegurada, preocupa-se com o excesso de argumentos puristas em torno desta arte, e enfatiza que o cinema só tem a perder com as recusas das adaptações, tanto de romances quanto do teatro (o cinema "não arrisca grande coisa contratando roteiristas como Shakespeare ou até mesmo Feydeau"). Enfatiza, ainda - e isto é sobremaneira importante para nossa análise -, que "uma história estética de influência em arte" evidenciaria "um comércio decisivo entre as técnicas artísticas, pelo menos em certa fase de evolução delas". E acrescenta: "Nosso preconceito da ‘arte pura’ é uma noção crítica relativamente moderna"

Ambos são comuns na defesa da impureza das artes, e, mais especificamente, a da linguagem cinematográfica. Diferenciam-se, sobretudo historicamente, enquanto falam "do teatro ao cinema", transformativamente, ou então de "teatro e cinema", comparativamente. Não podemos deixar de notar a complementaridade de um e de outro neste aspecto, pois torna-se facilmente compreensível entender o caráter criativo e até "natural" de uma adaptação se entendemos que o cinema, enquanto arte e em suas obras, já é uma síntese dessas mesmas artes das quais a adaptação ocupa (o romance, o teatro e até mesmo a pintura), e, pois, as tem inscritas "geneticamente" em si, em suas condições de produção. Cabe, no caso da adaptação, apenas não trair essas condições e observar as condições das outras artes adaptadas, como se se tratasse de uma verdadeira tradução. Suas teorias, portanto, sinalizam para a primeira qualidade - a "comercial", ou melhor, transacional - do cinema.

Parece-nos relevante o fato de que ambos os teóricos que ora analisamos e dos quais tentamos extrair o que seriam os fundamentos do cinema tenham, mais cedo ou mais tarde, trabalhado com os conceitos de imagem e representação, sendo esta geralmente entendida como parte constituinte daquela que, por sua vez, é algo que não é puramente dado, que o cinema faz surgir - uma espécie de "sentido aberto" e não um significado bem delimitado - seja por um maior ou menor (ou mesmo "nulo") acrescentamento de interpretações à realidade, seja pela ação do mecanismo cinemático, do conjunto das suas articulações dinâmicas - ao espectador. Em Bazin, ambos os conceitos servem para explicar que o realismo cinematográfico é "uma linguagem cuja unidade semântica e sintática não é de modo algum o plano; na qual a imagem vale, a princípio, não pelo que acrescenta mas pelo que revela da realidade"

Eisenstein, por sua vez, também entende a imagem como composta pelo conjunto de representações particulares, só que para ele esse composto forma uma espécie de "gestalt", ou seja, um todo em que o conjunto de "n" representações resulta em uma imagem de sentido "n+1". Compõe-se em dois estágios: a reunião de detalhes/representações e o resultado dessa reunião na mente do espectador. Aqui, as representações são identificadas aos planos (que, por sua vez, não são entendidos como unidades mas como "células"). Aliás o que nos interessa é o fato de em ambos a imagem ser considerada como algo que se dá na mente do espectador (ou, no caso de Bazin, "mais perto dos olhos", embora ainda na mente).

Percebe-se, então, que em relação aos procedimentos do cinema, ambos, cada qual com sua maneira particular, dividem em duas etapas a elaboração do filme: o plano, que para ambos tem uma "base mimética"; e a montagem, responsável pelo "todo fílmico".

Primeiramente, devemos explicar melhor o que queremos dizer com "base mimética" associada ao plano. Para isso, teremos que nos reportar a cada autor em separado, para não cometermos nenhuma injustiça. Vejamos primeiro Eisenstein, a quem não podemos a princípio acusar de imitador da realidade, até porque veremos que para ele boa parte do filme (quando bem feito) era fruto da relação do diretor com o seu tema, de uma posição ou interpretação. Entretanto, ele é quem primeiro coloca a questão da cinema como um captador da realidade, ao afirmar que a matéria-prima do cinema são as "descrições" (à semelhança dos hieróglifos que compõem o ideograma chinês) do plano, descrições estas feitas - na prática proposta por ele - "isoladas em significado e neutras em conteúdo". Vem daí a conclusão de Eisenstein sobre a dureza da matéria-prima do cinema:

O plano, considerado como material para a composição, é mais resistente do que o granito. Esta resistência é específica dele. A tendência do plano à completa imutabilidade factual está enraizada em sua própria natureza. Esta resistência determinou amplamente a riqueza e a variedade de formas e estilos da montagem - porque a montagem se torna o principal meio para uma transformação criativa realmente importante da natureza

Em Bazin tal proximidade é mais facilmente (e perigosamente) identificada, uma vez que ele entende o cinema como uma arte intrinsecamente voltada para o mundo, isto em sua própria "essência", desde sua ontologia:

Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma, automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo .A personalidade do fotógrafo entra em jogo somente pela escolha, pela orientação, pela pedagogia do fenômeno; por mais visível que seja na obra acabada, já não figura como a do pintor. Todas as artes se fundam sobre a presença do homem; unicamente na fotografia é que fruímos de sua ausência. Ela age sobre nós como um fenômeno "natural", como uma flor ou um cristal de neve cuja beleza é inseparável de sua origem vegetal e telúrica.

O que tem por conseqüência

A existência do objeto fotografado participa (...) da existência do modelo como uma impressão digital. Com isso, ela se acrescenta realmente à criação natural, ao invés de substituí-la por uma outra.

Aliado a isso, temos que a imagem fotográfica também traz inscrita em si a realidade do espaço que experimentamos usualmente, suas leis e proporções. Este realismo espacial está para o cinema assim como a presença do ator está para o teatro, em outras palavras:

Estamos prontos a admitir que a tela se abre sobre um universo artificial, contanto que exista um denominador comum entre a imagem cinematográfica e o mundo em que vivemos. Nossa experiência do espaço constitui a infra-estrutura de nossa concepção do universo. Transformando a fórmula de Henri Gouthier [sobre o teatro]:" o palco acolhe todas as ilusões, a não ser a da presença", poderíamos dizer: "podemos desprover a imagem cinematográfica de toda realidade, a não ser de uma: a do espaço".

Em segundo lugar, temos a montagem que, como já dissemos, é o foco das atenções de ambos, ainda que de modo diverso. Concordam que é a montagem a responsável pelo resultado do todo fílmico (a imagem, chamada por vezes "tema geral" por Eisenstein, e por "significado", algumas vezes por Bazin), etapa em que a ação do diretor é mais direta e decisiva, última instância para se determinar o estilo que o filme seguirá (embora, a rigor, isto já fosse identificável desde a decupagem, segundo Bazin. Disto, aliás, depreende-se que Eisenstein chamava de montagem, inicialmente, um processo bem demarcado - embora ele tenha posteriormente relativizado um pouco mais este conceito, estendendo-o inclusive para a mise-en-scène do ator e para a "imagem de cada cena ou parte independente" - ou seja, não coincide totalmente com o conceito bazaniano; em outras palavras, os dois conceitos não se dirigem, tal e qual, ao mesmo ato, mas caminham para uma mesma definição).

Para a estratégia estética de Bazin, principalmente, o conceito de montagem enquanto esfera de interferência sobre os vestígios deixados pelo mundo no celulóide será capital, principalmente quando sustenta que sua definição de realismo não abrange um fazer pontual mas toda uma "banda de estilos" oscilante desde uma interferência lógica, na organização dos fatos e em uma certa estilização plástica (como em Orson Welles) até o "nada de cinema", como em De Sica e Zavattini (por exemplo, em Ladrões de Bicicleta) e outros neo-realistas.

Eisenstein, no entanto, tem uma ênfase diferente, até porque em sua época a necessidade maior era a de que fosse feito o cinema, e, pois, desenvolver classificações indicava ser algo sem tanta importância, ou mesmo impossível, dada a novidade da arte. A montagem, então, surge como um poderoso recurso com uma função: a de constituir a organicidade da obra, (sua "exposição coerente") e produzir nela o que o cineasta russo chamou de patético, ou seja, a disposição "correta" das representações de forma que sua exposição na tela faça o espectador "saltar" de uma qualidade a outra, tanto emocionalmente quanto mentalmente.

Temos, assim, no cinema um operar com a realidade que delineia o estatuto de sua imagem: inicialmente composto por representações que estão muito próximas da realidade que experimentamos, seja por causa de suas qualidades psicológicas (a melhor das ilusões) e espaciais (a presença do "espaço real" na tela), seja porque são "foto-fragmentos da natureza" gravados, o filme absorve da realidade (ou da natureza) as relações que a permeiam e que a constituem. Sobre essas representações -e com elas - a montagem atua, organizando a obra em si e em relação ao espectador (duas operações intimamente ligadas) ou então com o máximo de cuidado, para não infringir a condição da ilusão realista. Daí que o resultado pode ser tanto a ambigüidade, um filme em que é impossível julgar moralmente os personagens, ainda que representem sua própria decadência (cujo melhor exemplo é "A regra do jogo" de Renoir), quanto o simbolismo, o filme feito uma "coleção viva de objetos", do qual apreendemos o raciocínio do cineasta de forma emocional.

O leque das atrações não compõe alegorias de fácil leitura, permanecendo as perguntas: por que a tensão da ruptura entre o cavalo e a charrete na abertura da ponte em Outubro? na mesma seqüência, que estatuto tem a imagem da moça e o deslizamento tão destacado de seus cabelos pela fenda? lembrando Potemkin, como dar conta das razões de Eisenstein na escolha das atrações da escadaria de Odessa?

O cinema é, portanto, um pêndulo que balança entre a abstração e o realismo, mas que tem sempre por base a realidade, "intocada" ou "neutralizada" para o trabalho do montador.

Finalmente, suas teorias fundam-se sobre o público, ou melhor, suas reflexões sobre a imagem e o fazer cinematográficos à percepção humana remetem continuamente à psicologia do homem. Na verdade, desde seus primeiros escritos há uma preocupação basilar com o homem que assiste ao cinema e com o que o cineasta pode levar a esse homem com os recursos intrínsecos à sua arte.

Isto se dá porque a imagem cinematográfica remete por si mesma à existência de um espectador, pois, mais do que destinado à exibição, o cinema é uma linguagem que explora um desejo humano antigo, sobre o qual podemos encontrar referências desde o mito da caverna de Platão, e suas leis de produção estão muito próximas das do "discurso interior humano". Para Bazin:

Partindo da natureza fotográfica do cinema, fica fácil, com efeito, nos convencermos de seu realismo. Longe de a existência do maravilhoso ou do fantástico vir a enfraquecer o realismo da imagem, ela é sua contraprova mais convincente. A ilusão não está fundada, como no teatro, em convenções tacitamente admitidas pelo público, mas, ao contrário, no realismo imprescritível do que lhe é mostrado. O truque deve ser perfeito: o ‘homem invisível’ deve usar pijamas e fumar cigarros.

Seria preciso concluir daí que o cinema está fadado unicamente à representação, se não da realidade natural, pelo menos de uma realidade verossímil, cuja identidade com a natureza, tal qual o espectador a conhece, é admitida por ele? O relativo fracasso estético do expressionismo alemão confirmaria essa hipótese, pois bem se vê justamente que O gabinete do Dr. Kaligari quis subtrair-se ao realismo do cenário sob a influência do teatro e da pintura. Mas seriadar uma solução simplista a um problema que admite respostas mais sutis. Estamos prontos a admitir que a tela se abre sobre um universo artificial, contanto que exista um denominador comum entre a imagem cinematográfica e o mundo em que vivemos.

Em outras palavras, o cinema é uma técnica da ilusão verdadeira, uma "naturalidade" que compara uma fotografia à percepção de um floco de neve ou um galho de árvore e aproxima, de certa maneira, o cinema do sonho.

Junta-se a isto o "novo problema" que Eisenstein apresentou em 1935

O discurso interior está exatamente no estágio da estrutura sensorial da imagem, não tendo ainda atingido a formulação lógica com a qual o discurso se reveste antes de sair para o mundo

Aliás, talvez seja por estar nesse estágio que a relação do espectador com a obra se dá na oscilação da realidade e da irrealidade, e, pois, seja possível emocionar-se com um filme estando ciente de que o que nos emociona é.... "só um filme".

Isto posto, o cinema serve, num grau maior ou menor de intencionalidade, para fazer com que o espectador saia de sua qualidade ideológica inicial para uma outra qualidade - fenômeno realizado pela organização patética do filme -, ainda que esta nova qualidade seja o próprio filme feito pura ambigüidade ou descristalização moral. Para Eisenstein, o pathos é um recurso para levá-lo ao êxtase, a partir de um confronto do espectador com o filme na tela. Bazin, usa uma outra idéia para comentar este mesmo fenômeno: a identificação (inerente ao cinema, principalmente dado o seu realismo psicológico e espacial), que leva o espectador para junto (ou dentro?) do filme, sem, contudo, fazê-lo perder-se de si. Daí a comparação do cinema com um "voyeurismo permissível".

Ainda que as duas idéias tenham sido desenvolvidas em contextos e percursos diferentes, encontram-se quando criticam, segundo os mesmos critérios, aquela que seria a forma mais simples (ou simplista) de levar o espectador a identificar-se com o filme, emocionar-se: o "herói". Eisenstein define que a forma mais simples de se estabelecer na obra um guia patético é colocar um personagem em tela sofrendo ou transmitindo, em sua ação, o êxtase que se pretende para o espectador. Isto ocorre facilmente quando uma obra se constitui como um mero enredo. Não devemos perder de vista, contudo, que este seria o protótipo, jamais a regra. Bazin, em sua brilhante dissertação "Teatro e Cinema" sobre o "teatro filmado", argumenta que a contradição (e não antinomia) entre o teatro e o cinema é que o primeiro propicia a oposição enquanto o segundo a identificação do ator em relação à platéia Contudo, critica a perspectiva que aproxima o conceito de identificação no cinema ao sentido de passividade e evasão. Argumentando essa crítica, admite que "a psicologia da imagem cinematográfica oferece uma inclinação natural a uma sociologia do herói caracterizada por uma inclinação passiva; porém, em arte como em moral, as inclinações são feitas também para serem remontadas."

Se passarmos a observar os filmes que influenciaram (e que foram influenciados) pelos escritos de Bazin, isso torna-se ainda mais delicado. Um Jean Renoir, por exemplo, em A regra do Jogo: temos aí um guia que também se confunde com o tema da frivolidade aristocrática dos personagens, todos abastados (exceto os empregados) e moralmente tíbios, principalmente diante da morte, tanto de animais (a seqüência da "caçada") quanto do "herói nacional", mas ainda assim densos, carregados de visões do mundo. Coisa semelhante ocorre com o neo-realismo italiano. Nas palavras de Bazin

Nenhum [dos personagens de filmes da Escola Italiana da Liberação] fica reduzido ao estado de coisa ou de símbolo, o que permitiria odiá-los confortavelmente, sem ter que ultrapassar, de antemão, o equívoco da humanidade deles

Neste tipo de filme o próprio anonimato dos protagonistas (às vezes dos atores...), sua temática/situação simples - localizada dentro de enredos que seriam "moralizantes", se dissociados do cinema -, o pathos, se assim podemos chamar este fenômeno, escolhe como guia a ambigüidade (termo valioso para Bazin, como vimos) humana, em sua forma mais clara. A identificação, portanto, não é justamente a passagem do espectador de uma qualidade à outra, sendo esta última o próprio filme? O maior exemplo visual, extremo, é verdade, seria a cena de A rosa púrpura do Cairo de Woody Allen, em que a protagonista, , ipsis litteris, entra no filme pela mão do personagem.

Devemos salientar, todavia, que esta relação com o público não se dá de forma unidirecional nem mesmo seguindo o trajeto emissor—canal—receptor, mas numa forma de co-autoria. Não é possível pensar o cinema como mero entretenimento (se isto de fato existe). Todo bom filme diz ao espectador para que se sirva. "A tarefa do cinema é fazer com que a platéia ‘se sirva’, não diverti-la".

A única coisa que o diretor pode oferecer é , como dissemos anteriormente, um guia, estabelecer uma "ordem lógica" dos fatos apresentados. Não haveria sentido se o cineasta não se dispusesse a isto, a deixar os olhos do espectador percorrerem o écran, deixando abertas as várias vias que atravessam a imagem. Caso se impusesse, não haveria tomada de consciência (e sim um ditado) nem mesmo seria possível ver em vez de tentar entender uma visão de mundo.

Apontamentos sobre a imagem eletrônica

Percebemos, ao cotejar os escritos de Bazin e Eisenstein, que a imagem cinematográfica, seja e de inspiração "formativa" ou "realista", esteja ela preocupada em fazer o espectador dar um salto ideológico ou "simplesmente ver", tem pelo menos três características intrínsecas: impureza de linguagem, base mimética em conflito com a montagem "abstrativa" e, finalmente, está sempre em relação com alguma mente espectadora apta a co-participar de sua existência, fato de que o cineasta deveria ter sempre consciência, a fim de fazer grande a sua obra.

Entretanto, tratamos até agora do audiovisual cinematográfico clássico; cabe observar o que vem acontecendo com a nova imagem que surgiu posteriormente e que se alastra, ocupa e entremeia a cultura contemporânea: a imagem eletrônica do vídeo e da TV que já tomou, também, o próprio cinema.

Como apenas principiamos esta parte de nossa pesquisa, apontaremos aqui, sucintamente, algumas balizas que já pudemos vislumbrar neste recente caminho.

Se mesmo antes do advento da pós-modernidade e da imagem eletrônica era possível falar em um "comércio entre as artes" como vimos anteriormente, hoje, com tudo isso acontecido e acontecendo, troca-se de uma vez a expressão "impureza" pelo seu extremo sedimentado: "hibridização". De fato, no cinema se falava de impureza ainda vislumbrando uma certa organização e classificação das artes. Na época da imagem eletrônica, porém, como "na cultura das mídias, a regra é a comutação e a mutabilidade". Ela se insere num período em que

o crescimento constante e cada vez mais absorvente das mídias tendem , por si sós, a abalar as divisões estratificadas entre cultura erudita, popular e de massas como campos perfeitamente separados e excludentes. Ao contrário, quanto mais as mídias se multiplicam mais aumenta a movimentação e interação ininterrupta das mais diversas formas de cultura, dinamizando as relações entre diferenciadas espécies de produção cultural. A multiplicação das mídias tende a acelerar a dinâmica dos intercâmbios entre formas eruditas e populares, eruditas e de massa, populares e de massa, tradicionais e modernas, etc..

Essa profusão de meios entre os quais vivemos gerou uma complexidade maior nas mensagens, pois "as mídias inauguraram, antes de tudo, a mistura de códigos e de processos sígnicos numa mesma mensagem, isto é, a simultaneidade semiótica das mensagens". O veículo por excelência deste contexto é certamente a TV, ou, entendido mais amplamente, o vídeo.

A TV se caracteriza como uma mídia das mídias, isto é, tem um caráter antropofágico. Ela absorve e devora todas as outras mídias e formas de cultura, desde as mais artesanais, folclóricas e prosaicas até as formas mais eruditas: do cinema, jornal, documentário até o circo, teatro, etc.

Dá-se que mesmo as mídias mais tradicionais ou ainda as que deram os primeiros passos da imagem técnica, como a fotografia, são transformadas pelas mídias mais novas, a elas se incorporam ou têm, de alguma forma, de se relacionar com elas. Todo esse ambiente é marcado, ainda, pela interatividade entre emissor e receptor (quase elevada ao status de lei) que em algumas mídias que eles podem, de fato, se confundir.

A partir do momento em que a imagem fotoquímica pode ser digitalizada e processada em memórias de máquinas numéricas, é sua própria natureza que se coloca em questão. (...) Todo o efeito especular da imagem fotográfica, ou seja, a ilusão de que os registros fotoquímicos efetuados pelas películas "refletem" qual um espelho permanente o mundo visível que posa para a câmera, entra em colapso com essas técnicas que permitem interferir diretamente no registro luminoso.

Juntamente com essa incorporação/deglutição decisiva para o novo estatuto da nova imagem audiovisual está o fato de que essa nova forma de registro, ser facilmente decomposta, alterada ou mesmo apagada. Ela não detém aquela materialidade visual e aquela dureza que Eisenstein identificara no cinema clássico, na película, e que levou Bazin a falar em "impressões digitais da realidade".

No universo eletrônico, mesmo o signo não estético que possui características distintas do signo de natureza indicial fotográfico, está inserido numa lógica paradoxal mais complexa que o circunscreve analogamente num contexto mais abstrato, portanto, pensamental. A imaterialidade é uma dessas características que o torna fisicamente distinto do signo puramente fotoquímico. A diferença está na sua manuseabilidade que é muito mais intensificada e potencializada pela via eletrônica.

Sua qualidade de projeção também é reduzida se comparada à película, o que torna o vídeo precário como registro naturalista. As imagens videográficas afastam, pois, a perspectiva da mímesis, "não são embusteiras", "não pretendem fazer passar por espelhos do mundo, na medida em que despudoradamente se apresentam como outros mundos que se agregam ao mundo, sem nenhuma pretensão de aprisioná-lo nas malhas da representação". Coincidentemente ou não, propicia uma nova supervalorização da montagem como condição estética, principalmente no cinema eletrônico:

A montagem, elemento primordial na construção de filmes verdadeiramente artísticos, admite também pressupostos filosóficos que governam o tecido significante. A construção do estético está nessa atitude, em cujo resultado expressa uma visão de mundo peculiar a cada criador.

O novo contexto em que a imagem eletrônica é produzida não é aquele que buscava a realidade para fugir ao propagandismo partidário como algumas décadas atrás, nem detém a preocupação de mostrar a massa (operária) enquanto sujeito. Esta nova imagem, em seu âmbito estético, nasce de um projeto desintegrador de videoartistas dos anos 60, interessados sobretudo "na corrosão dos aparelhos produtores de imagem técnica"; quer produzir "configurações e texturas desvinculadas de qualquer homologia com um modelo exterior".. Para finalizar, tem uma objetivo contraditório (enquanto arte): revolucionar o conceito de arte, absorvendo construtivamente e positivamente os novos processos formativos abertos pelas máquinas e tornar sensíveis e explícitas as finalidades embutidas nos projetos tecnológicos, sejam elas de natureza bélica, policial ou ideológica. Estão, pois, contraditoriamente, entre a adaptação transformadora e a denúncia. Ademais o sentido dessa arte é difícil, porque

O fenômeno da imagem eletrônica é múltiplo, variável, instável, complexo e ocorre numa diversidade infinita de manifestações.

(...)

Como conseqüência dessa generalização da imagem eletrônica os profissionais que a praticam , bem como o público para o qual se dirige, tornam-se cada vez mais heterogêneos, sem qualquer referência padronizada, perfazendo hábitos culturais que resultam em verdadeiros quebra-cabeças para os fanáticos da especificidade

Aliás um vero quebra-cabeças. Já se falou da gestalt de códigos que constitui a cultura das mídias e que o vídeo surge sob o signo da desagregação. Disso advém que nele encontramos todas as representações em contínua metamorfose figurativa e uma "morte da referência".

O que agora vemos na tela mosaicada é a paisagem da própria mídia, ou seja, imagens que têm por referência outras imagens , ou então imagens que remetem ao seu próprio processo interno de fabricação e produção de sentidos

Heranças de Bazin e Eisenstein

Seria possível ainda mencionar os nomes de Eisenstein e Bazin em tempos de imagem eletrônica? Seria algo válido deter-se ainda em suas afirmações e teses? Se, porém, a pós-modernidade é tão assinalada por uma cultura de mídias que efetuam transações entre si, e isto inclui mesmo as formas tradicionais de cultura - entre elas o cinema -, decerto há algo que ainda é aplicável, dessas teorias, a essa nova imagem. A princípio, diríamos que, das características anteriormente apresentadas, temos um direcionamento estético não-realista e uma potencialização da impureza da linguagem e do caráter público, ou publicável, das imagens cuja circulação em meios eletrônicos é mais fácil do que sua conservação; além de uma polissemia que extrapola os limites da ambigüidade e do simbolismo.

Mas sobretudo uma nova, ou mais clara, relação da imagem com aquilo que ela representa se estabelece:

A consciência do duplo abre e intensifica a consciência da brecha, fenda, hiato entre o mundo e sua imagem. Desabamento do sonho idílico da unidade. Quanto mais um aparelho ou máquina se aperfeiçoa no registro mimético do mundo, mais evidente se torna sua impossibilidade de ser igual àquilo que registra. Há um descompasso, defasagem entre o ritmo do mundo, matéria vertente do vivido, e a capacidade do registro. A febre da vida não cabe em imagens. Sob as vestes da imagem, algo cai. Esse algo é o real que resiste na sua irredutibilidade.

Com rigor, não podemos mais falar em "vestígio" deixado pela realidade sobre o filme, pois a metáfora da "impressão digital" não dá mais conta do que ocorre com a fita magnética. Se quiséssemos seguir o raciocínio bazaniano, poderíamos, no máximo, falar que a realidade produz uma "perturbação" na fita, tal como uma pedra ou mesmo um cisco caído num lago. Mas o que há de indicial numa perturbação? O que ela indica senão que algo perturbou algo? O que ela diz sobre o que perturbou? Para completar, as ondículas estão no tempo fragilmente, sua duração é dispersiva, se arrefece, some. Comparando com a metáfora de Crusoé e Sexta-Feira, não temos aqui o rastro deste último, mas sua respiração. Que signo importante a respiração de Sexta-Feira deve ter sido para a história de Robinson Crusoé, ainda que ele nem lhe tenha dedicado uma linha sequer...

A princípio, Eisenstein é o que evidentemente teria maiores contribuições a dar neste novo estágio da imagem audiovisual, dado que sua teoria põe o sujeito criador numa posição de destaque no processo da produção do filme. Ele também salientou o caráter de síntese das artes que imbui o cinema, o que ocorre também com as atuais mídias. Entretanto, falar em "híbridos" não é falar em síntese somente, pois o híbrido também deixa marcas de seus elementos constituintes, ainda que sutis. A televisão, principalmente, ilustra bem o caso, como vimos. Neste ponto poderia entrar Bazin, com suas análises sobre a adaptação ("tradução") de uma mídia para outra pois "a TV pode absorver qualquer outra mídia, impondo a elas qualidades de organização, ritmo e aparência que lhe são próprios"; o que, aliás, relembra a época em que o crítico francês escrevia, quando das interações entre cinema, pintura, teatro e romance.

Poderíamos nos perguntar, ainda, se o fato de as imagens que as mídias produzem remeterem a elas mesmas não seria porque vivemos na cultura das mídias, o que significaria que os "outros mundos" da imagem eletrônica não são "visões transcendentais", mas bifurcações possíveis deste mesmo mundo, que à primeira vista não se lhe assemelham. Bazin nunca afirmou que a psicologia da imagem fotográfica era imutável e mesmo a nossa experiência de espaço (base de sua segunda tese sobre o realismo) muda, e tem mudado com o crescimento das tecnologias e dos signos. Não encontramos nada a respeito deste tema em seus escritos. Talvez pudéssemos supor uma "dialética entre a psicologia e a experiência", mas estaríamos extrapolando nossos limites e os deste pequeno trabalho.