A atividade do receptor, um modo de se conceber as relações entre Comunicação e Poder

Por Itania Maria Mota Gomes*

 

Podemos considerar que a investigação sobre a comunicação, naquilo em que ela considera a relação entre media e receptores, é marcada por duas largas tradições, a dos Estudos dos Efeitos e a dos Estudos de Recepção. Para efeito desse ensaio, consideraremos inscritos na primeira tradição aqueles estudos que procuram medir o impacto que os meios de comunicação têm sobre a audiência. Efeito, no nosso entendimento, é o conjunto das conseqüências resultantes da presença dos media nas sociedades contemporâneas. Em geral, enquanto conseqüência da atividade comunicativa, os efeitos pressupõem a finalização do processo de comunicação. Considerar os efeitos implica conceber o processo comunicativo como a produção e a transmissão de um estímulo comunicativo (em geral, de uma mensagem dotada de um conteúdo estrategicamente orientado) realizadas por um emissor, dotado de intenções e objetivos, e a produção de um impacto num determinado público.

Os Estudos de Recepção, segunda tradição que consideramos, caracterizam-se por procurar entender o lugar do receptor no processo comunicativo a partir da perspectiva da sua atividade e, portanto, negando as concepções que o entendem passivo, já que condicionado por um esquema linear de comunicação. Definem-se como aqueles estudos que procuram dar conta da relação entre os meios e os receptores a partir da negação de que essa relação seja de mero efeito de uns sobre os outros.

Nosso objetivo, ao analisar diferentes abordagens da relação entre media e receptores, é procurar entender o modo como descrevem e interpretam o encontro entre os meios de comunicação de massa e suas audiências - o que implica considerar como interpretam e descrevem os media, os receptores e o processo receptivo propriamente dito. Não se trata simplesmente de identificar qual a descrição mais detalhada ou verdadeira, nem de estabelecer qual a interpretação mais adequada. Nossa intenção, muito mais modesta, é explorar as contribuições que elas oferecem para a compreensão do processo comunicativo.

Nesse sentido, de modo geral, para a primeira tradição, os media são concebidos como a causa dos efeitos. Eles são transmissores ou disseminadores de mensagens. A expressão meios de comunicação ao mesmo tempo em que remete indistintamente aos veículos de comunicação - suportes técnicos usados na comunicação (o rádio, a TV, o cinema, as revistas, os jornais) - pode ser uma metáfora para tratar das mensagens e conteúdos que por eles são veiculados. Na verdade, como a ênfase é posta no processo de transmissão de mensagens, pouca atenção é dada às características técnicas dos veículos. Raramente se leva em consideração as diferenças que caracterizam cada meio de comunicação em particular; procura-se, antes, analisar como as mensagens são construídas e que conteúdos ela carrega. As mensagens são entendidas como portadoras de um conteúdo, que pode ser explícito ou implícito, mas quase sempre é intencionalmente determinado.

Nesse sentido, constituem-se exceções as abordagens de Marshall McLuhan e de Walter Benjamim, que fizeram o esforço de considerar os meios de comunicação não como portadores de uma mensagem, de um conteúdo, mas como tecnologias responsáveis por mudar a relação do homem com o modo de perceber o mundo.

Os receptores, por seu turno, são entendidos de início como uma massa de indivíduos anônimos, fácil de conduzir, absolutamente à mercê dos poderosos meios e emissores; ou, o que não é contraditório, como indivíduos socialmente isolados. Mas aos poucos começa-se a levar em consideração características sócio-estruturais e culturais dos indivíduos que integram a audiência, tais como grau de instrução, classe social, profissão, faixa etária, gênero, e outros mais relativos ao grau e tipo de consumo dos mass media. Vai-se mostrando, pouco a pouco, que os receptores não comparecem vazios à relação com emissores, meios e mensagens. Essas características funcionam como filtros ou instâncias mediadoras e serão responsáveis por determinar a seletividade e, portanto, a limitar os efeitos.

A noção de mediação não aparece, nesse caso, para dar conta do modo como os media constituem, eles mesmos, uma mediação entre homem e mundo. Trata-se, na verdade, do fato de que há elementos de mediação entre os próprios media e os receptores. A mediação, nos estudos dos efeitos, é trazida em causa como argumento para explicar o modo de produção dos efeitos, diretos/indiretos. A seletividade, por seu turno, determina a intensidade de sua força: se há seletividade, os efeitos são limitados, constituindo-se, no mais das vezes, em mero reforço de atitudes já existentes; se não há seletividade (seja porque os indivíduos estão socialmente isolados e, por exemplo, sem sofrer a mediação das relações pessoais, seja porque os meios de comunicação, a televisão principalmente, apresentariam determinadas características de configuração técnica e social que reduziriam a capacidade de exposição e percepção seletivas), então há fortes poderes.

Os estudos em torno dos efeitos limitados, com a consideração das mediações, e os estudos dos efeitos a longo prazo, lograram nos afastar da metáfora da agulha hipodérmica, segundo a qual os media "injetam" seus conteúdos diretamente em cada membro da audiência, produzindo sua imediata absorção. Os receptores já não são mais diretamente atingidos, o efeito não se produz de imediato. Nesse sentido, os estudos dos efeitos sofisticaram-se, acolheram um leque mais amplo das influências dos media na sociedade e na cultura, apontaram algumas variáveis que podem interferir na sua efetivação - ampliando ou diminuindo seu grau de importância e sua intensidade. Mas o modo mesmo de olhar o processo comunicativo procurando por seus efeitos é um modo de subjugar o receptor. O receptor ainda é alvo, mudo, passivo.

O receptor representa o lado passivo do esquema da comunicação. Isso significa que, mesmo quando se vai ao receptor empiricamente, não é para analisar como ele age, mas para verificar como ele reage às estratégias de captura. Vai-se ao receptor verificar se ele recebeu "bem" uma mensagem que já vem pronta, não para compreender o que ele efetivamente faz com a mensagem recebida. É a mensagem que interessa, é através dela que o poder é exercido. O processo receptivo é entendido, então, como decodificação de sinais, ou melhor, como a internalização de conteúdos.

Não é correto afirmar-se, no entanto, que a investigação em comunicação, seja ela empírica ou especulativa, carregue uma orientação essencialmente "mediacêntrica" e recuse qualquer interesse pelo receptor ou por seu modo de uso dos media. É falso afirmar-se que são os estudos de recepção que marcam a descoberta dos atores sociais, que antes seriam entidades deduzidas dos textos ou quantificadas pelas medições de audiência. Em geral, quando se diz isso, tenciona-se fazer crer que os estudos de recepção, inaugurados nos anos 80 pelos Estudos Culturais, tenham como sua característica essencial voltar-se para os receptores. Isso de modo algum é verdadeiro - não o é em relação ao interesse pelo receptor e não o é, também, pela abordagem empírica. A tradição de investigação sobre os efeitos de todo modo ajudou a dissipar a noção de que os receptores são ampla e facilmente influenciáveis. No nosso entendimento, a investigação sobre os efeitos inventou muitas idéias agora reformuladas na avalanche recente dos estudos sobre a recepção. É certo, no entanto, que o fez em uma linguagem técnica diferente e, às vezes, com menos sutileza.

Assim, por exemplo, os investigadores que trabalharam sobre os efeitos afirmavam faz já bastante tempo que as predisposições dos receptores frente aos textos influem de maneira crucial na compreensão que esses receptores têm dos textos, e que diferentes predisposições geram diferentes compreensões - isso já aparecia nas investigações de Hadley Cantril, marcou boa parte do que se fez sob o epíteto de efeitos limitados, e está já nas investigações sobre os efeitos cognitivos. Portanto, não é propriamente a atenção aos receptores que marca a distinção entre os estudos dos efeitos e os estudos de recepção. A distinção está no modo de olhar o receptor, modo que se caracteriza, nos estudos de recepção, pela postulação da sua atividade, e sobretudo, pelos objetivos que guiam esse olhar - um projeto político de transformação social.

Deve-se à teoria matemática da comunicação, senão a idéia de que há um receptor e um processo de recepção, o próprio vocabulário que a institui. Embora, nesse caso, tenha havido uma extensão de uso dos termos. Receptor, no modelo matemático, indica o aparelho técnico (como Weaver dizia ser, no caso humano, "o ouvido, com o oitavo nervo") que possibilita a decodificação dos sinais e destinatário é aquele a quem a mensagem se destina. A partir daí, no entanto, no âmbito dos estudos de comunicação, receptor e destinatário são usados como termos sinônimos e se referem não ao aparelho técnico, mas ao destinatário, usuário ou consumidor dos media - ouvinte, leitor, telespectador. Receptor hoje é um conceito geral que designa qualquer indivíduo humano na situação específica em que participa de um processo comunicativo. Enquanto indivíduo, ele participa do processo de comunicação não só com seu cérebro e ouvido, mas com todos os seus sentidos, características de personalidade, seu inconsciente, suas experiências anteriores, sua cultura.

Recepção, por sua vez, que para a teoria da informação significa decodificação strictu senso, tem assumido uma acepção cada vez mais ampla, significando, a depender da corrente de investigação que o adote, desde o uso ou consumo dos meios de comunicação de massa até os processos gerais de produção de sentido. Entre aqueles que têm se dedicado à investigação da recepção, pretende-se que ela seja não mais uma etapa do processo de comunicação, mas um lugar novo de onde o processo comunicativo deve ser repensado. Nesses termos, pensar a recepção significaria explodir o modelo informacional.

Os Estudos Culturais surgem como conseqüência do esforço de alguns investigadores ingleses em romper com a perspectiva behaviorista característica da Sociologia da Comunicação, que vê a influência dos meios como um mecanismo de estímulo e resposta. Inseridos na perspectiva das teorias críticas da sociedade, procuram conceber os media como forças sociais e políticas amplas e difusas, cuja influência é quase sempre indireta e sutil, às vezes mesmo imperceptível. Eles recusam tanto uma concepção da audiência como passiva e indiferenciada quanto a noção de que os textos mediáticos são portadores de um sentido transparente. Apostam, então, no exame detalhado da variedade de formas como as mensagens são decodificadas pelos membros da audiência com orientações sociais e políticas diferentes.

São justamente os estudos de recepção realizados nos marcos dos Estudos Culturais que formam a tradição dos estudos de recepção. Nessa tradição, desde os trabalhos iniciais de Edward Palmer Thompson, Richard Hoggart, Raymond Williams, mesmo antes da criação do Centre for Contemporary Cultural Studies, em 1964, os Estudos Culturais já se distinguirão como uma corrente de investigação que põe o foco da sua atenção no processo ativo e consciente de construção de sentido na cultura. Pensar a cultura como expressão dos processos sociais, como faz Richard Hoggart, ou como um modo integral de vida, como faz Raymond Williams, leva os Estudos Culturais, nessa fase inicial, a criar as bases para uma compreensão de cultura como a esfera do sentido que unifica as esferas da produção e das relações sociais.

Os Estudos Culturais representam uma tentativa de superar a concepção dos processos comunicativos oriunda do modelo matemático, na medida em que procuram compreender os meios de comunicação no interior da sociedade e entender a recepção aos meios, notadamente a recepção televisiva, do ponto de vista de uma teoria que pretende compreender a complexidade e as contradições da experiência cultural nas sociedades contemporâneas mirando os meios de comunicação não como um aparato ou instrumento, mas como constitutivos das próprias práticas sociais. Eles constituem uma tentativa explícita de produzir uma teoria da comunicação que tivesse como eixos as culturas e as práticas comunicativas e que criasse as condições para investigar os processos de constituição do massivo desde as transformações na cultura.

Os investigadores dos Estudos Culturais procuram entender a recepção não como uma etapa do processo comunicativo, mas como o seu sinônimo, na medida em que é o próprio processo de recepção que instaura a troca comunicativa. No intuito de procurar compreender as relações entre cultura, comunicação e poder, ou seja, compreender os processos de comunicação de massa e o modo como uma mensagem ou texto efetivamente produzem ideologia, eles tentam deslocar a atenção da mensagem para a relação comunicativa entre a mensagem e seus receptores. Para entender o sentido de uma mensagem é necessário considerá-la enquanto interpretada por uma dada situação psicológica, histórica, social, antropológica. Leitor, telespectador, receptor não são aqui sujeitos textuais, mas sujeitos sociais, o que significa, para os Estudos Culturais, sujeitos que têm uma história, vivem numa formação social particular (que deve ser compreendida em relação a fatores sociais tais como classe, gênero, idade, região de origem, etnia, grau de escolaridade) e que são constituídos por uma história cultural complexa que é ao mesmo tempo social e textual.

Rever o processo comunicativo desde o âmbito da recepção quase sempre significa reivindicar a ocupação do lugar do sujeito pelo receptor. Os estudos de comunicação que colocam a tônica na recepção o fazem a partir do "reconhecimento do sujeito e da pertinência de uma teoria que parte das concepções deste último, de sua subjetividade" (MATTELART & MATTELART. 1989: 201) para pensar os processos comunicativos.

A expressão Estudos de recepção abriga desde a consideração inicial dos processos de decodificação das mensagens (nos modos das investigações de Hall e Morley) até à ênfase mais recente nos usos dos meios e no consumo cultural; acolhe desde a investigação de campo sobre o modo como os receptores produzem sentido a partir dos textos mediáticos até a etnografia da audiência, que procura examinar certos encontros entre media e receptores a partir de sua inserção no espaço doméstico e nas práticas da vida cotidiana.

Comum a todos esses enfoques e desdobramentos é a ênfase na atividade do receptor. Porém, um dos aspectos mais problemáticos dos estudos de recepção é o modo mesmo como a atividade dos receptores é entendida. O que significa, a rigor, atividade? O que se quer dizer quando se afirma que os receptores respondem ativamente aos chamamentos dos media? Para a corrente investigativa dos usos e gratificações, reconhecida em seu pioneirismo por explicitar a atividade dos receptores, conceber o público como ativo implicava supor que o uso dos meios era dirigido por objetivos claros e conscientes, no caso, a satisfação de necessidades psicológicas individuais. Para os estudos de recepção, a atividade dos receptores é mais complexa. Em geral, postular essa atividade do receptor significa postular que: 1) os receptores são sujeitos sociais; 2) os receptores "carregam" para o seu encontro com os media toda a sua cultura - argumento dos Estudos Culturais desde as investigações de Richard Hoggart e Raymond Williams -, a sua posição na estrutura social - ênfase de Hall, porém mais concretamente de David Morley -, e o contexto particular de sua inserção na sociedade, descrito em relação a fatores sociais tais como gênero, etnia, idade; 3) esses elementos extralingüísticos determinam os códigos que os receptores usarão para interpretar as mensagens; 4) como há uma enorme variedade de contextos sociais e culturais, há uma equivalente multiplicidade de leituras possíveis.

Há, quase sempre, uma associação entre os dois principais pressupostos dos estudos de recepção, o de que a audiência é sempre ativa e o de que as mensagens dos meios são polissêmicas. Polissemia tem sido entendida, no sentido que lhe deu Bakhtin ao se referir à multi-acentualidade da linguagem, como sua abertura a diferentes interpretações. A conseqüência da polissemia, para os Estudos Culturais, é que ela deixa margem a que os receptores elaborem uma leitura diferente, a partir de sua inserção nos contextos sociais mais amplos. Em outros termos, polissemia implica a solicitação da atividade do receptor. Às vezes, demonstrar a diversidade de sentidos construídos é, em si mesmo, uma prova da atividade dos receptores.

A consideração do contexto extralingüístico, da situação social concreta onde ocorre a interação entre media e receptores implica uma opção metodológica dos estudos de recepção em abordar o processo receptivo a partir do conjunto das variáveis que levam os receptores a interagir com os meios. Essa opção metodológica aproxima-se daquela adotada pelos investigadores dos efeitos limitados e nos leva de volta à idéia de seletividade. Apesar de afirmar o receptor como sujeito ativo, sua lógica nos leva a compreendê-lo como alvo, como local de chegada das influências das várias instâncias mediadoras, o que de qualquer modo denota a idéia de passividade. Por exemplo, atribuir às instituições sociais o papel de reforço ou de subversão das mensagens veiculadas pelos media parece-nos, outrossim, uma reedição do modelo do fluxo de comunicação em duas etapas, imputando às instituições o papel de filtro, de agenciador, reforçador ou indutor de mudanças de comportamento, atitudes, opiniões, valores, gostos... Essa opção metodológica aparece de modo muito evidente no paradigma das mediações, em que mediações são ao mesmo tempo o conjunto dessas influências que estruturam e organizam a percepção da realidade por parte do receptor e o lugar do qual "provêem as constrições que delimitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultural da televisão" (BARBERO.1987:233).

Por outro lado, postular a atividade do receptor é falar da sua capacidade de resistência aos poderes dos media e, portanto, falar do poder do receptor. Tal associação entre recepção e resistência é conseqüência da filiação marxista dos Estudos Culturais. Pensar a cultura numa perspectiva marxista ao mesmo tempo em que procedia a uma revisão do marxismo clássico permitiu aos Estudos Culturais superar uma concepção especular da cultura e, com o apoio de Gramsci, conceber a comunicação como práticas de significação num campo de forças sociais. A comunicação era o lugar da luta de classes e deveria ser interrogada a partir dos modos de luta que aí se produzem. Mas perceber a cultura como lugar de confronto implicou muitas vezes a valorização da cultura popular e de sua capacidade de resistência. No campo da comunicação, este risco se reflete na crença de que a tarefa dos meios de comunicação de massa é dominar e a dos receptores (classe subalterna) é resistir. Realiza-se uma rotação no eixo tradicional: a capacidade de ação - de domínio, imposição e manipulação - que antes era atribuída aos emissores é traspassada agora à capacidade de ação, de resistência e impugnação dos receptores. Conceber a comunicação e a cultura como locais de enfrentamento implica considerar a recepção como prática de resistência.

Estabelecer a condição da recepção e do sujeito receptor (sujeito social, cultural, político) enquanto um lugar que recebe e processa as informações do ponto de vista do tesouro cultural que dispõe, acionando o conjunto de práticas, hábitos e saberes ao qual tem acesso, para avaliar, julgar, processar e interpretar os dados permite à investigação da recepção dotar a pedagogia da comunicação de chaves de acesso e intervenção na realidade. O que está em jogo é a construção política da anatomia de um receptor que deve ser crítico, ou seja, deve possuir o instrumental hermenêutico que lhe permita ser capaz, por um lado, de perceber as mensagens mediáticas como produzidas no interior de uma sociedade de interesses e, por outro, de a elas resistir.

O interesse pedagógico é muito evidente no enfoque integral da audiência, formulado com o objetivo explícito de facilitar a intervenção na prática educativa das famílias, das escolas e das instituições políticas e sociais. Mas o objetivo de intervenção social não é exclusividade de Guillermo Orozco. Ele é formulado por Barbero, por Morley, por Ang, por Radway, por Hall. Lembremos que a inserção do trabalho intelectual num projeto político mais amplo foi definido por Hall como sendo a característica mais sólida dos Estudos Culturais e, de fato, esse engajamento aparece na corrente inglesa desde Hoggart até hoje. Janice Radway conclama as feministas a adotarem estratégias educacionais baseadas em seus achados empíricos e analíticos; Ien Ang enfatiza a necessidade de tornar o prazer que as telespectadoras tiram de Dallas politicamente produtivo, inserindo-o num plano de ação feminista. O engajamento do trabalho intelectual em "estratégias emancipadoras" é apontado por Schroder (1987:26) como a principal distinção entre a investigação na tradição dos estudos críticos e a investigação na tradição da Sociologia da comunicação, que, no mais, estariam tendendo a uma convergência.

A capacidade dos Estudos Culturais de formular uma crítica cultural e política e analisar as práticas receptivas na perspectiva de sua articulação com as relações de poder é evidente. Afirmar que a produção de sentido não é somente uma questão de significação, mas sobretudo uma questão de poder tem constituído o esforço do trabalho investigativo de quase todos os investigadores ligados aos cultural studies. Mas parece haver, em alguns momentos, uma divergência sobre o que é mesmo o poder e quais os limites entre sua dimensão textual e sua dimensão social. Essa divergência reflete-se, marcadamente, nas investigações norte-americanas, cujo distanciamento do marxismo tenderia a exacerbar a ênfase na dimensão textual do poder.

Stuart Hall talvez seja o intelectual ligado aos Estudos Culturais que mais tenha, nos dias de hoje, evidenciado sua insatisfação com alguns desenvolvimentos mais recentes dos Estudos Culturais, sobretudo com sua internacionalização (ou americanização). Para Hall, investigar a cultura impõe-nos a convivência com uma permanente tensão, aquela entre ter que reconhecer a dimensão textual das questões culturais ao mesmo tempo em que se reconhece também que a textualidade não é nunca o bastante; aquela de ter que reconhecer que a textualidade é o lugar do exercício do poder, mas, ao mesmo tempo, que o poder tem uma dimensão não textual. Ele chama a atenção para o fato de que a cultura sempre opera através da textualidade, mas que, ao mesmo tempo a "textualidade nunca é suficiente" (HALL.1996a: 271). É claro que as questões políticas e de poder são sempre questões de representação, são sempre questões discursivas. Entretanto, são também questões que escapam à mera textualidade. Os Estudos Culturais nunca se afastam da assunção de que os textos são fonte de poder, de que a textualidade é um lugar de representação e resistência, mas eles parecem às vezes se afastar (é o que acontece com John Fiske, por exemplo) da premissa segundo a qual os textos devem ser estudados em sua conexão com as instituições, as classes e grupos, as nações, os gêneros, as raças, as práticas ideológicas.

Hall entende a "textualidade como um lugar de vida e morte" (Ibidem: 273), o que implica reconhecer a materialidade do poder e da desigualdade e, por isso, rejeitar que os Estudos Culturais se ocupem exclusivamente de questões de linguagem e textualidade. Ainda que ele observe que as questões de poder e de política tenham sempre que ser abrigadas nas representações da textualidade. Para Hall, aprender a lidar com essa tensão é requisito para que os Estudos Culturais cumpram sua "vocação ‘mundana’" (Ibidem:272), qual seja, realizar-se como uma intervenção, um projeto político de transformação social.

Isso nos chama a atenção para o fato de que a atividade do receptor não necessariamente implica poder sobre a ordem social. Se há algumas tendências à exacerbação do poder do receptor, hoje, para os investigadores críticos, no esforço de alcançar uma abordagem teórica mais adequada das relações culturais e seus efeitos, tomar em consideração sua atividade não implica desconhecer que os media efetivamente produzem efeitos.

Ao afirmar a condição do receptor como sujeito ativo e apontar categorias de análise que podem ser articuladas metodologicamente, os estudos críticos da recepção lograram operar um significativo avanço teórico-metodológico em relação aos estudos dos efeitos. Neste sentido, as descrições etnográficas têm sido extremamente competentes em afirmar a atividade dos receptores. No entanto, algumas limitações ainda persistem, marcadamente aquelas impostas pelo modo de pensar tal atividade, que, como já vimos, muitas vezes se aproxima de seletividade e mediação.

No esforço de romper com a tradição de investigação sobre os efeitos e com o modelo matemático da comunicação, os investigadores dos Estudos Culturais procuraram pensar a recepção não como uma etapa do processo de comunicação, mas como "um lugar novo, de onde devemos repensar os estudos e a pesquisa de comunicação" (BARBERO.1995:39). Pensar a recepção seria o mesmo que explodir o modelo mecânico.

Mas, parece-nos, e isso é muito importante para o que pretendemos compreender aqui, esse esforço acaba por não se realizar plenamente. A maior parte dos estudos recentes sobre a recepção continua partindo da existência "fática" de um tipo particular de texto que se estima recebido por certo conjunto de indivíduos. Tais estudos perpetuam a idéia de que existe um circuito de comunicação claramente delimitado e, portanto, identificável, situável e sujeito a observação.

Os estudos de recepção mantêm a ênfase, própria do modelo informacional, na questão da mensagem. Embora às vezes se anuncie uma superação da determinante mecanicista de tal modelo, na medida em que a ênfase sairia da transmissão das mensagens e seria transferida aos processos de construção de sentido, a rigor, a preocupação ainda está posta na decodificação, nas leituras ideológicas, na capacidade de resistência dos receptores aos conteúdos ideológicos. Permanece ausente dos Estudos Culturais a questão da sensibilidade, por exemplo, que McLuhan e Benjamin já haviam apontado. Quando se referem ao prazer, é ao prazer de subverter a mensagem (Fiske), ao prazer de burlar o autoritarismo masculino (Radway). Os Estudos Culturais calam-se sobre a fruição dos produtos culturais; preocupam-se com os modos de resistência às suas mensagens.

Os estudos da recepção puderam instituir o espaço para uma revisão das teorias da comunicação, mas na medida em que se transformam em investigação empírica qualitativa de audiência, na medida em que a ênfase é posta sobre as situações particulares dos encontros, a intuição inicial se perde. O que se ganha, a rigor, em multiplicar ao infinito as etnografias da audiência? "...Somente se redescobre, exemplo atrás de exemplo, que os diferentes grupos de espectadores recorrem a diferentes maneiras de ler os textos que se lhes propõem" (DAYAN.1997:27). É claro que essa repetição responde a um objetivo político claramente definido. O que questionamos é se está contribuindo para os próprios objetivos dos estudos de recepção - pelo menos como o pensaram Hall, Morley, Barbero, de recusa do modelo matemático; questionamos se as etnografias estão contribuindo para a compreensão do processo receptivo.

Para Ien Ang, conhecer a audiência parece ser a questão fundamental dos Estudos Culturais atualmente. Em seu livro mais recente, Procura-se a audiência desesperadamente (Desperately seeking the audience) (ANG.1991b), a autora questiona as formas de acesso à audiência televisiva configuradas pelas medições de audiência e refuta a invisibilidade da audiência que se esconde atrás dos números. A questão para Ang é saber exatamente quem ou o que é a audiência televisiva, essa audiência concreta que se esconde por trás dos índices, com seu conhecimento estatístico, técnico e apenas aparentemente objetivo.

Mas a questão crucial, do ponto de vista da recepção, não deveria ser propriamente saber quem é a audiência, nem deveria ser descrever seu comportamento, mas compreender o processo comunicativo. Em outros termos, compreender o próprio processo que institui uma audiência. Nesse sentido, perguntamos: Qual é, a rigor, a importância dos atores sociais "de carne e osso" para a compreensão do processo receptivo? O que é possível tirar de substancial das pesquisas empíricas - ainda que qualitativas - a não ser fatores circunstancialmente limitados a uma audiência empírica e pontualmente investigada. Na medida em que o principal interesse esteja em saber como se dá o processo de recepção, em que medida os estudos de recepção devem guiar-se pela pergunta sobre quem é a audiência? Ou melhor, em que medida conhecer a audiência implica conhecer o processo de recepção?

Em que medida a investigação empírica qualitativa da audiência é, ou contribui para, um "outro modo de ver a comunicação" (BARBERO.1995:57)? Descrever o comportamento da audiência através da atenção a fatores situacionais que determinam padrões distintos de ver TV - com interrupção, sem interrupção; atentamente, com fidelidade a canais e gêneros, zappeando -; "explicar adequadamente a importância da TV na vida das pessoas" (RONSINI.1999:3); discriminar a variedade de resposta humana aos mass media seriam estratégias de abordagem do processo receptivo? No nosso entendimento, a prática de realizar investigações localizadas, regionalizadas, de certos encontros entre media e receptores está impedindo a compreensão do processo receptivo.

Não afirmamos aqui que a pesquisa empírica não tenha dado suas contribuições para o entendimento do processo receptivo, sequer postulamos que se possa compreender o processo receptivo exclusivamente a partir da análise do texto, mas propomos que se leve às últimas conseqüências a análise de quais têm sido ou quais ainda podem vir a ser as contribuições da pesquisa empírica qualitativa de audiência para a compreensão da recepção.

Particularmente, tendemos cada vez mais a acreditar que a pesquisa empírica qualitativa de audiência tem se mostrado muito útil como estratégia para a abordagem de outras questões referentes à comunicação, tais como sociabilidade, configurações da política, organização do tempo e do espaço, cultura global e cultura local, relações entre media e identidade cultural. O refinamento das metodologias qualitativas de investigação da audiência têm chamado de tal modo a atenção dos investigadores em comunicação que hoje a investigação sobre a recepção tem se transformado ela mesma numa metodologia, no sentido de que serve de suporte para análise de outras questões referentes à comunicação e cultura contemporâneas. Os estudos de recepção se transformaram, eles mesmos, numa espécie de modelo teórico-metodológico de investigação em comunicação, mas têm nos deixado desamparados quando se trata de explicar o que é mesmo recepção?

O esforço de investigação sobre a recepção, que começa com uma tentativa de "articulação das investigações sociológicas e das investigações sobre o texto" (JENSEN & ROSENGREN. 1997:340), vai ganhando um peso sociológico cada vez maior. Quando a análise de recepção passa a chamar-se etnografia da audiência, a mudança não é apenas de terminologia. Mudam-se os propósitos. Se antes a ênfase era entender o processo receptivo - e acreditamos que, com todos as limitações impostas pela metáfora da decodificação e pela metáfora da mediação, esse é o propósito de Stuart Hall, de David Morley e de Jésus Martín-Barbero - agora a ênfase está em conhecer a audiência, em descrever seu comportamento.

Na medida em que os estudos de recepção se qualificam como investigação empírica qualitativa de audiência, eles, do ponto de vista do que nos interessa aqui, se empobrecem e, ao invés de marcar uma posição de ruptura em relação à tradição de investigação da comunicação oriunda da teoria da informação, significam um refinamento das pesquisas de audiência. A identificação dos estudos de recepção à pesquisa empírica qualitativa de audiência parece-nos extremamente redutora. A redução está em atribuir aos chamados estudos de recepção a mera função de levantamento e coleta de dados, atribuição que se evidencia na afirmação corrente de que os estudos de recepção são a pesquisa empírica de audiência realizada nos marcos dos Estudos Culturais. Com isso se perdem de vista as possibilidades que os estudos de recepção parecem vislumbrar.

 

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