Alvarenga
e Ranchinho
50 anos de esculhambação
Anselmo
Brombal
Aluno do 2º ano de jornalismo da FACCAMP- Faculdade de Campo Limpo Paulista, SP
Prólogo
A
Música Sertaneja é definida como “gênero de música popular de origem rural”.
Dona de 60% do mercado de discos no Brasil, a música sertaneja foi
desenvolvida, em sua versão original, a partir dos anos 20, e ficou conhecida
como “moda de viola”. Nas décadas seguintes, com o processo de urbanização do
país, ampliou seus temas, antes restritos aos assuntos do campo.
Na
verdade a “moda de viola” existe desde os tempos do Brasil Colônia, quando os
cantadores se inspiravam em canções religiosas portuguesas e lendas indígenas.
Por quase quatrocentos anos, foi a forma usada para se transmitir passagens
bíblicas de uma a outra geração. Com o tempo, apareceram outros temas, como as
histórias dos desbravadores.
O
jornalista e poeta Cornélio Pires reuniu muitas dessas “modas de viola” no
livro “As Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho”. Atribui-se também a
Cornélio Pires a descoberta das duplas Tonico e Tinoco e Alvarenga e Ranchinho,
que ao lado de outra, Tião Carreiro e Pardinho, foram as mais conhecidas de
todos os tempos.
A
música sertaneja tradicional normalmente é cantada em duas vozes. Em sua forma
mais pura são admitidos somente uma viola (de seis cordas) e um violão (cinco
cordas). Têm como tema histórias populares, embora haja uma vertente conhecida
também como “moda de patacoada”, com letras de histórias absurdas.
Ainda
na década de 20, o jornalista e poeta Cornélio Pires insiste com as poucas
gravadoras da época para que sejam feitos investimentos nas duplas sertanejas.
Somente em 1929 aparecem gravações independentes, e bastaram alguns anos para
que as duplas passassem a freqüentar os programas de auditório das emissoras de
rádio, gravar profissionalmente suas músicas, e aceitar também a influência da
guarânia, originária do Paraguai.
Alvarenga
e Ranchinho
Murilo
Alvarenga, mineiro de Itaúna, e Diésis dos Anjos Gaia, paulista de Santos, se
conheceram no final da década de 20. Murilo já trabalhava em circos mambembes,
ora como trapezista, ora como malabarista. Estava no circo a convite do tio,
empresário do ramo. Mais velho, engrossou a voz e passou a cantar tangos
também.
Diésis,
que veio a ser o Ranchinho, conheceu Murilo Alvarenga em Santos, durante uma
serenata encomendada por um comerciante. Bastaram algumas horas de conversa – e
algumas generosas doses de cachaça, segundo historiadores mais críticos - para
que resolvessem cantar juntos. Escolheram o gênero sertanejo, até aí novidade
nos grandes centros, e passaram a se apresentar em circos como Alvarenga e
Ranchinho.
Em
1933 se juntaram a uma companhia de espetáculos, a Bataclã, e vieram para a
Capital, São Paulo. Em um ano a fama da dupla chegou aos ouvidos do maestro
Breno Rossi, que respondia pela orquestra da Rádio São Paulo. Alvarenga e
Ranchinho passaram a cantar regularmente em programas de auditório, a convite
do maestro. Nesse mesmo ano conheceram Silvino Neto e formaram um trio – Os
Mosqueteiros da Garoa – que não deu certo, apesar de fazer algum sucesso, e foi
desfeito em menos de um ano.
Em
1935 Alvarenga e Ranchinho, novamente como dupla, ganharam um concurso de
marchinhas carnavalescas, promovido pela Prefeitura de São Paulo. A música era
“Sai Feia”, de autoria de Alvarenga.
No
mesmo ano foram convidados por Capitão Furtado, um compositor sertanejo, para
participar do filme “Fazendo Fita”, produzido por Vitório Capellaro. Terminada
a filmagem, Furtado levou a dupla para o Rio de Janeiro, então capital da
República, para uma temporada na “Casa do Caboclo”.
Alvarenga
e Ranchinho tinham prestígio em São Paulo, mas no Rio de Janeiro precisaram
começar do zero. Nunca alguém tinha ouvido falar nos dois, e o jeito simples de
falar e vestir rendeu algumas chacotas quando passaram a procurar espaços nas
emissoras de rádio que tinham programas de auditório. Conseguiram um horário à
tarde, na Rádio Tupi, mas em poucos meses foram para o horário nobre da época,
a noite.
Alvarenga
e Ranchinho, já com nome, foram convidados para uma excursão internacional.
Perto, mas internacional. Se apresentaram em Buenos Aires, no Teatro Smart, e
ao voltar para o Brasil foram contratados pelo Cassino da Urca, do Rio de
Janeiro, onde ficaram durante dez anos, até seu fechamento, quando da proibição
do jogo no país.
Em
1938 dois fatos. O primeiro, o maior sucesso carnavalesco da dupla, com a
marchinha “Seu Condutor”. O segundo, a primeira briga de Alvarenga com o velho
parceiro – coisa que se tornou até comum nos 27 anos seguintes. Quando Diésis
saía, Alvarenga chamava Delamare de Abreu, o Bentinho, para fazer as vezes de
Ranchinho.
Em
1946, Alvarenga abriu uma boate em Copacabana, bairro nobre do Rio de Janeiro.
O empreendimento durou dois anos. Em 1950, a segunda saída do país – durante um
mês a dupla ficou em cartaz no Cassino Estoril, em Lisboa, Portugal.
Em
1959, Alvarenga e Ranchinho deixaram o rádio de vez, e como outros artistas,
foram para a televisão, que embora novidade no Brasil, era tida como o futuro
da classe. Em 1965, Diésis, o Ranchinho, foi substituído por Homero de Souza
Campos. Cinco anos depois, com as apresentações reduzidas e os convites
minguando, por conta das novidades, como a Bossa Nova, a Tropicália e a invasão
da música estrangeira, Alvarenga e Ranchinho se voltaram para o interior
paulista.
Murilo,
o Alvarenga, morreu em São Paulo em 1978. Diésis dos Anjos Gaia, o primeiro
Ranchinho, morreu em São Vicente, litoral paulista, em 1991. Homero de Souza
Campos, o segundo Ranchinho (nascido em Campos Gerais, Minas), morreu em
Guarulhos, São Paulo, em 1997. De Delamare de Abreu, ou Bentinho, eventual
substituto de Ranchinho nas crises da dupla, não há notícias.
O
deboche
Gerações
mais recentes entendem como deboche, como sátira ou esculhambação os programas
humorísticos também recentes, criados, produzidos e apresentados numa época em
que os conceitos são outros, em que há liberdade de expressão, em que há acesso
à informação.
Alvarenga
e Ranchinho foram pioneiros. Para entender completamente tal pioneirismo, é
preciso entender que o país vivia de outra forma, a política (e sua polícia)
era outra, e que as ordens partiam de verdadeiros feudos. Cantavam nas
emissoras de rádio, que equivaliam às emissoras de televisão atuais, em termos
de audiência e abrangência, somente os indicados ou os muito talentosos.
Alvarenga
e Ranchinho não eram uma coisa nem outra. Ninguém do poder os indicara, e o
talento era o mínimo, se levados com rigor alguns quesitos como voz, melodia,
formação musical e uma desejável beleza que pudesse encantar o público
feminino. Mas escolheram a sátira, o deboche, a esculhambação pura e simples
para se fazer entender pelo público, ávido de críticas.
Tudo
foi motivo para Alvarenga e Ranchinho encontrarem graça. Políticos não eram
poupados, e qualquer ato do governo servia, se não para uma música, ao menos
para o diálogo entre uma cantoria ou outra, fato imitado posteriormente por
outras duplas sertanejas. Deixavam escapar, nessa conversa, tudo o que não
podiam ou não tinham tempo para dizer. O público delirava. E eles acumulavam
problemas.
Problemas
com delegados de polícia, zelosos cumpridores das normas então estabelecidas,
com padres e pastores, e principalmente com a Censura do governo. O DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda), que existiu durante o primeiro governo
de Getúlio Vargas, o Estado Novo, enxergava subversão e desrespeito, e por isso
vetava músicas que não podiam ser gravadas.
Grande
parte do problema foi resolvido em 1939, quando Alzira, filha de Getúlio
Vargas, levou os dois para cantar no Palácio das Laranjeiras, então residência
oficial da Presidência, no Rio de Janeiro.
Na
presença de Getúlio, Alvarenga e Ranchinho não mudaram uma vírgula do
repertório, e estranharam ao ver o presidente sorrindo das sátiras cujo alvo
era justamente ele. E Getúlio deu ordens ao DIP para não mais incomodar a
dupla.
Alguns
políticos souberam, mais tarde, aproveitar a ironia de Alvarenga, tido como o
cérebro da dupla. Em vez de brigar, passaram a contratá-los, para, em suas
campanhas, atacarem os adversários. As músicas, ou paródias, eram feitas sob
encomenda, e faziam tanto sucesso quanto às originais.
Alvarenga
e Ranchinho esculhambaram com tudo. Inclusive com eles mesmos. Ao voltar de
Buenos Aires produziram uma música, “Nós em Buenos Aires”, que esculachava seu
próprio feito. Não perdoaram o racionamento de combustíveis, durante a 2ª Guerra Mundial, nem o aumento de preços. Conseguiram, com sobras de
imaginação, contar a história de duas caveiras que se amavam num cemitério.
Embora
reconhecidos em praticamente todo o país, Alvarenga e Ranchinho não chegaram a
fazer fortuna. Alvarenga chegou a falar, mais de uma vez, que precisava vender
o almoço para poder jantar. Dizia também, em tom de blague, que tomava Melhoral
amarrado a um barbante, e que tão logo passava a dor de cabeça o retirava do
estômago, para depois aproveitá-lo. Nos shows, costumava afirmar que reunião
podia ser feita no escuro, para economizar energia elétrica, e que na mesma
reunião ele arriava as calças, para economizar fundilhos. O problema é que o
público não sabia quando a conversa era séria ou quando era mais uma
brincadeira.
Não
morreram pobres, abandonados ou endividados. Mas não deixaram fortunas aos
herdeiros. São lembrados pela irreverência, pela audácia e pelo pioneirismo,
embora nunca tivessem aceitado o título de precursores da música sertaneja. Mas
são um grande pedaço da História, não só da música, mas também do próprio país.