É POSSÍVEL EXISTIR ALTA-FIDELIDADE EM ÁUDIO?

UMA ANÁLISE DOS SISTEMAS DE CAPTAÇÃO, GRAVAÇÃO E REPRODUÇÃO
SONORAS À LUZ DA TEORIA DA PERCEPÇÃO PEIRCEANA.

Júlio Martins

Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo:     Alta-fidelidade é um assunto incomum na área de Comunicação e Semiótica. Há muita discussão e trabalhos publicados a respeito da arte, música, dança, TV, cinema, publicidade, etc. Entretanto, curiosamente sobre os processos de captação, gravação e reprodução sonora, intrínsecos ao vídeo, cinema, TV, música, entre outros, as publicações são raras e  dificilmente se aventuram nos meandros das técnicas envolvidas. Podemos dizer que sem a captação, gravação e reprodução do som, não há cinema (pelo menos sonoro), não há vídeo, TV, muito menos a música gravada.

Alta-fidelidade é um em conceito de sistema de som, segundo o qual, é possível se obter uma reprodução muito fiel de um evento sonoro gravado, especialmente da música. Nosso objetivo com este trabalho é levantar e analisar uma série de questões éticas e técnicas, e examinar se diante delas, existe a possibilidade de existência dessa alta-fidelidade. A principal questão, ao nosso ver, está na percepção humana, que não se restringe aos aspectos e limites fisiológicos, como tem sido considerado. A alta fidelidade á examinada à luz da teoria peirceana da percepção e da classificação dos signos de Peirce.

1 – Considerações iniciais

O presente trabalho, trata de um assunto incomum na área de Comunicação e Semiótica, que é uma análise da alta-fidelidade em áudio, à luz da teoria peirceana e, é fruto de uma longa e demorada pesquisa, como fim de elaborar uma monografia para a disciplina de Semiótica Peirceana, ministrada pela Prof. Dra. Lúcia Santaella, no programa de Mestrado Interinstitucional de Comunicação e Semiótica PUC/UFES. Este trabalho portanto, é uma versão mais condensada. Para se compreender a discussão que pretendi levantar, especialmente na área de Comunicação e Semiótica, percebi que seria necessária uma boa dose de informação colateral, para usar uma expressão de Peirce,  e consequentemente familiaridade com o tema, para que eu pudesse me fazer entender adequadamente, tamanha foi a necessidade de mencionar e descrever questões técnicas.

Para dar conta dessa necessidade elaborei um Apêndice, que embora tenha características de um glossário, não o é, porque o detalhamento da informação e/ou explicações limitam-se ao contexto deste trabalho. Por razões de espaço, este apêndice não faz parte desta versão condensada do trabalho, por esse motivo peço ao leitor que, sendo necessário, solicite a versão integral (ver dados ao fim da seção referências), que lhe enviarei. Ainda assim, preferi manter no texto as indicações que remetem ao apêndice (palavra em negrito, seguida da abreviação [V.A.], entre colchetes) porque em certos casos, os assuntos são abordados apenas na intensidade necessária, pressupondo uma complementação. Penso que, manter a indicação, ajudará a saber que, o assunto em questão, não foi extensamente abordado, por constar do apêndice, e não por omissão.

2 - Apresentação

Desde que surgiram os primeiros processos de registro sonoro, especialistas em áudio, consultores, audiófilos, pesquisadores, empresas de sonorização e indústrias de transdutores [v.a. 01], discutem, pesquisam e desenvolvem métodos, procedimentos e equipamentos objetivando a reprodução perfeita de eventos sonoros (gravados) especialmente de música, o que se convencionou denominar de alta-fidelidade [v.a. 02], no Brasil.

Ao longo da história recente do áudio, temos observado ciclos constantes de busca, alcance, insatisfação, nova busca, e assim sucessivamente. Artigos e livros são escritos descrevendo as inúmeras qualidades positivas de um novo processo. Num momento seguinte inúmeros problemas e limitações são levantados e discutidos, aperfeiçoamentos diversos são implantados até que se encontram as fronteiras do processo,  mais adiante, a plataforma ou padrão até então perfeita é substituída por uma outra, cujas características técnicas permitem uma melhor reprodução do programa musical. Na história recente podemos citar o disco de vinil como exemplo de uma plataforma no seu limite e, o CD como o seu sucessor, com uma resolução de áudio nunca antes pensada, naquela ocasião.

Não é possível precisar exatamente quando e por quem foi cunhada a expressão  alta-fidelidade (ou High Fidelity como originalmente no inglês) mas a Enciclopaedia Britannica (2000, CD-Rom) refere-se ao surgimento da revista High Fidelity [v.a. 03] em 1951, o que nos dá uma pista de data aproximada. Desde então vem sendo usado com o intuito de significar  a possibilidade de captar/amplificar/reproduzir ou captar/gravar/reproduzir um evento sonoro com máxima fidelidade ao fenômeno sonoro original. O termo carrega consigo a certeza de que se trata de uma busca de reprodução muito fiel, mas que não é mais o programa original, apesar de que, também traz embutida a crença na existência de uma reprodução perfeita. Entretanto e infelizmente, como sempre ocorre com termos e conceitos que são difundidos largamente, fora de seu contexto, as palavras adquirem outros significados (às vezes equivocados e/ou indesejáveis) ou estendem os já existentes, para além do que de fato denotam. O que verificamos hoje nas revistas especializadas e em livros a respeito, é que perdeu-se de vista a noção de reprodução.

A busca por melhores condições técnicas de captação/gravação/reprodução de um evento ou fenômeno sonoro, para representá-lo de forma muito parecida com a que ocorreu, na minha avaliação, é legítima e, continuaria sendo se nunca se tivesse perdido de vista que, apesar de todos esforços e da rápida evolução tecnológica, ainda é uma busca  e, da reprodução de algo que, só foi possível com o uso de dispositivos transdutores para captar/gravar/reproduzir, que por melhores que sejam, em hipótese alguma são capazes de recriar o fenômeno ou evento sonoro tal e qual ele ocorreu. Não é o que tem acontecido. O conceito se disseminou a tal ponto – para   grande desgosto dos audiófilos – que mesmo pequenos sistemas portáteis de som, largamente difundidos como microsystems passaram a ser denominados como sendo de alta-fidelidade.

O problema é que se abandonou definitivamente o contexto original do termo alta fidelidade e agora, parece-nos que a reprodução perfeita (mesmo ainda sendo reprodução) foi finalmente alcançada. A avidez por informações a respeito e o crescente número de consumidores potenciais, fez surgir inúmeras revistas especializadas, cada qual publicando mensalmente inúmeros artigos com  ou explicações simplificadas de fenômenos físicos complexos, abrindo margem para a disseminação de muitos equívocos.

Então, parece-nos ser o momento mais apropriado para levantar a discussão: será que é possível existir alta-fidelidade?... Considerando a teoria da percepção peirceana, sou levado a concluir que não. Não é possível existir alta-fidelidade nem mesmo dentro do contexto que historicamente originou o termo, dada a quantidade de questões que não foram adequadamente respondidas, ou relevadas, em decorrência provavelmente, da falta de instrumental teórico para tal, na época. Nunca existiu alta-fidelidade por que toda reprodução de um evento sonoro (gravado ou ao vivo) é um outro fenômeno físico, com características intrinsecamente diferentes daquele original.

Pode-se argumentar que tais colocações se constituem num exagero de minha parte já que o termo intenta significar reprodução muito fiel ao original. Entretanto foi assim até agora e o que presenciamos? O termo foi extraído de seu contexto e largamente difundido sem as considerações necessárias, permitindo entendimentos e conclusões equivocadas. Penso que é uma questão de ética e responsabilidade, definir conceitos de forma clara, pensando até nas suas possíveis (e inevitáveis) simplificações que ocorrerão, pelo menos para tentar, evitar equívocos de interpretações futuras.

Estamos inexoravelmente conectados ao mundo e, consequentemente aos fenômenos sonoros, através da mediação dos nossos sentidos e da percepção. Nossos sentidos são transdutores de fenômenos físicos em impulsos nervosos e, a nossa percepção, transdutora por sua vez, destes em significação. Se ainda assim existisse a reprodução perfeita (gravada ou ao vivo) não haveria a menor possibilidade de assegurar que cada indivíduo fosse capaz de realizar a transdução do fenômeno sonoro em impulsos nervosos, e, posteriormente em significação em idênticas condições.

Por outro lado, os estudos e pesquisas em áudio e alta fidelidade, somente consideraram a percepção humana do ponto de vista sensorial e fisiológico (conforme indícios apresentados adiante), ou seja, até a geração dos impulsos nervosos, deixando em aberto a lacuna da elaboração da significação.

Então o que se pretende neste trabalho é procurar demonstrar a impossibilidade de se pensar num conceito de alta-fidelidade, por duas vertentes: a primeira delas é um levantamento da cadeia de transduções intermediárias, presentes em qualquer processo de captação/gravação/reprodução, de questões que foram relevadas ao longo da história do áudio e outras questões pertinentes; a segunda é uma análise do fenômeno sonoro, da sua reprodução, da nossa percepção dele e por fim, nossa construção da significação, à luz da teoria da percepção peirceana.

3 - Introdução

O primeiro livro publicado no Brasil sobre Alta-fidelidade é o de Hélio Taques Bittencourt e  Paulo Taques Bittencourt, “Curso “Esse” de alta-fidelidade: Fundamentos Psico-acústicos” em 1965 (informação verbal de Celso T. Bittencourt, filho de um dos autores, em 09/04/2001). Este livro foi citado algumas vezes por Cláudio Cesar Dias Baptista [v.a. 15] em seus inúmeros artigos publicados na Revista Nova Eletrônica, sobre áudio e sonorização, no período de 1977 a 84 , muitas vezes relatando sua experiência com o grupo Os Mutantes, do qual fez parte e, foi através da sua gentil colaboração, que obtivemos uma cópia.

No livro, o título do primeiro item do capítulo 1 é “A alta-fidelidade existe ?” Entretanto, Bittencourt e Bittencourt (1965) não respondem definitivamente a pergunta do título, mas definem alta-fidelidade com sendo “ ‘reproduzir um som tal como o original’ , dentro do limiar psicológico do observador,...” (Bittencourt e Bittencourt,1965: p.1). Na época, pelo que posso concluir,  o pensamento comum era de que os processos de transdução, captura e armazenamento, eram tão poucos, tão similares e tão rigorosos na preservação do aspecto mais próximo do original, que era impossível pensar na possibilidade de eles mesmos estarem introduzindo distorções e/ou modificações no som original. Vejamos um trecho inicial deste capítulo:

De fato existem muitas descrições de experiência realizadas, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, em que orquestras executavam peças que eram sucessivamente reproduzidas por um sistema eletroacústico, ficando os espectadores com a mesma sensação auditiva.  Até se chegou ao cúmulo de, na primeira parte de um concerto público, fazer-se os membros da orquestra fingirem que estavam tocando, quando a música na realidade provinha de um sistema  de alto-falantes bem camuflados; ‘enquetes’ realizadas no intervalo mostravam que mesmo os ‘críticos’ não perceberam a troca, menos alguns espectadores da primeira fila, que notaram ‘algo de anormal’ porque viram a fita durex que fixava as cordas dos violinos para que os músicos pudessem melhor representar... (Bittencourt e Bittencourt, 1965, p. 1)

Decerto que as experiências citadas carecem de uma descrição mais minuciosa, mas o que nos interessa especialmente não está nelas, mas sim na própria construção do texto. Olhando atenciosamente para o texto de Bittencourt e Bittencourt, verificamos que existem alguns pressupostos, entre ao quais o principal é: para não ter havido percepção de diferenças entre o som ao vivo e o som gravado e reproduzido, existe a crença (no texto) de que  houve uma gravação, com o que havia na época de mais perfeito em matéria de captadores (microfones) e a reprodução foi realizada utilizando o que havia também, de  mais perfeito como dispositivo reprodutor. A menção de um “sistema de alto-falantes bem camuflados”, pressupõe a existência de um transdutor perfeito, e de tal modo construído, que pudesse ser escondido e ainda permitir perfeita cobertura da platéia. Contudo, é um pensamento comum em áudio hoje, que ainda não existe esse dispositivo.

Pressupunha-se então uma cumplicidade com estúdios de gravação. Hoje – como veremos adiante – não é possível contar com essa cumplicidade, pois as inúmeras possibilidades abertas pelo processamento digital de sinal, há uma forte tendência de manipular as gravações (ao vivo ou em estúdio).

No meu entendimento – que não difere muito do de qualquer outro audiófilo, pesquisador ou consultor de áudio – o  que se pretende definir com conceito de alta-fidelidade é a busca de uma plataforma ou processo de registro sonoro e, de reprodução, que interfira (modificando-o) o mínimo possível no programa original, para que com isso, nossa atenção fique completamente absorvida pelo principal componente do programa de áudio, a música, e não nas distorções, chiados, e resposta em freqüências limitada, enfim, em outros componentes que se misturam ao áudio no momento da reprodução. E adiciono um detalhe importante, que às vezes é relevado: sem nunca perder de vista que é uma reprodução e portanto outro fenômeno sonoro.

Mas esta reprodução destina-se à nossa recepção através da audição, parte dos órgãos sensoriais da percepção humana. Ora, mediante um breve exame do panorama (já sintético) das teorias da percepção, traçado por Santaella no livro no livro A percepção: uma teoria semiótica (1998, 21-31), verificamos que a percepção – de acordo com as principais teorias – não pode ser compreendida apenas do ponto de vista fisiológico dos órgão sensoriais. Numa passagem esclarecedora, quando comenta uma das importantes teorias da percepção, de James J. Gibson, Santaella coloca a questão do seguinte modo:

Diz Gibson (p.24): ‘se tudo o que percebemos nos chega mediante a estimulação dos órgãos sensoriais, e se, apesar disso, certas coisas não têm contraparte na estimulação, é necessário assumir que estas últimas são, de algum modo sintetizadas. Como essa síntese ocorre, é o problema da percepção.’

Gibson parte aí, é evidente, de um axioma, provavelmente irrefutável, de que nossos órgãos sensoriais, ou seja, nossos cinco sentidos, são meios através dos quais se estabelece  a ponte entre o que está no mundo lá fora, ou pelo menos, o que nos chega como estrangeiro, e o mundo que, na falta de um nome melhor, chamamos de mundo interior. Os órgãos sensoriais funcionam, consequentemente, como janelas abertas para o exterior. Nessa medida, esses órgãos são superfícies, passagens, capazes de explicar alguns dos fatores, os mais propriamente sensórios da percepção, mas não são capazes de explicar por que toda percepção adiciona algo ao percebido, algo que não está lá fora,  no mundo fenomênico,  e que não faz parte,  portanto, da estimulação.  Nesse  ponto  é que a mente entra em cena, pois é dela a tarefa da síntese, vem dela a elaboração daquilo que chamamos de compreensão ou significado tanto do que está lá fora quanto da estimulação que é produzida como efeito. A correspondência entre o resultado perceptivo e aquilo que provoca não é portanto, uma correspondência ponto a ponto. Há uma diferença, há um descompasso, ou melhor, algo se perde e algo se acrescenta. Isso que se acrescenta, especialmente, e que ocorre na passagem dos órgãos sensoriais para o cérebro, é , por enquanto, ainda não observável, não mensurável. E aí se localiza, exatamente o problema da percepção. (1998, 21-22)

É óbvio que a colocação de Santaella, pertence a um contexto muito específico, onde entende como necessária a elaboração do panorama sintético das teorias da percepção, para daí apresentar uma teoria semiótica da percepção, contida na obra se Charles S. Peirce. Mesmo assim esta breve passagem, contém conclusões importantes, decorrentes de uma convivência com as teorias da percepção, suficientemente fortes para causar algum desconforto em audiófilos, pesquisadores e consultores de áudio, por que em sua maioria, os artigos e livros sobre áudio, abordam a questão da percepção, apenas do ponto de vista fisiológico.

Ora, se a percepção não pode ser compreendida apenas do ponto de vista sensorial, então não se pode sequer se pensar em alta-fidelidade, sem considerar a percepção além das fronteiras fisiológicas. Se o conceito de alta-fidelidade, veio sendo discutido desde seus primórdios até hoje, sem considerar as teorias da percepção – e desconfio que sim – sou  levado a crer, que muitos progressos, deixaram de ser obtidos e, muito esforço em pesquisa e desenvolvimento foi dispendido em questões, que mesmo com a obtenção de resultados mensuráveis física, elétrica e acusticamente, não são tão aparentes para a percepção auditiva humana. Vejamos alguns indícios que justificam minha desconfiança.

Há cerca de 10 obras em áudio, abrangentes e indispensáveis aos que desejam se aprofundar na área, que reúnem diversos autores, que por sua vez citam inúmeras outras obras e artigos. Uma destas é o Handbook for sound engineers; the new audio cyclopedia (Ballou Ed., 1991). Em seus 37 capítulos de 19 autores, são arroladas 670 referências. Destas, 631 referências (94%) são exclusivamente de eletrônica, acústica, áudio, etc. ; outras 34 (5%) referências remetem a trabalhos relativos à audição e/ou fisiologia humana; apenas 7 (1%) do total é de algum modo (ainda distante) ligado à percepção. No máximo referem-se à uma abordagem advinda da Psicologia ou da Psicoacústica. É claro que esta minha rápida análise considerou apenas os títulos das referências, sem verificar seu conteúdo. Foi uma delimitação necessária, para os objetivos em questão. Sem considerar outras obras importantes, é apressada qualquer afirmação em caráter definitivo.  Entretanto isso não deixa de ser uma amostra, segundo a qual, nos diversos estudos e pesquisas contribuíram para que o estágio atual de conhecimentos em áudio fosse atingido, as referências às teorias da percepção são mínimas.

Então meu principal questionamento é: Não considerando as teorias da percepção pode-se construir adequadamente um conceito de alta-fidelidade? Alta fidelidade a quê?... Para quem?... Mesmo considerando-as em parte, pode-se ainda falar em alta-fidelidade, sabendo que após a percepção de um fenômeno sonoro e sua conseqüente transformação em impulsos nervosos, existe um complexo esquema mental de construção da significação, sobre o qual não exercemos nenhum controle?

Analisar as questões da alta fidelidade, tal como foi concebida, em profundidade, evidentemente foge do âmbito da discussão à que me proponho, entretanto levantarei algumas questões de forma breve apenas para que não seja entendido, que foram relevadas, ou não foram consideradas adequadamente. Devo deixar claro portanto, que apesar de levantá-las mesmo brevemente, o foco da discussão é a existência ou não de uma alta fidelidade e, especificamente delimitada à reprodução sonora.

Ora, faz sentido pressupor a existência de uma  espécie de compromisso entre músicos, técnicos, estúdios e gravadoras, como o que citei anteriormente, quando o arsenal disponível (nos estúdios), para se captar e gravar eventos sonoros, é limitado em características técnicas, e as marcas e modelos de equipamentos, muito similares entre si. Mas é impossível, quando a tecnologia permite um leque variado de opções, como hoje em dia, o que pela sua multiplicidade, dificulta a criação e aplicação de quaisquer regras.

De 1965 (data da publicação do curso “Esse”) até hoje, a tecnologia e o conhecimento disponível para a fabricação de transdutores eletroacústicos (microfones, caixas acústicas e alto-falantes) evoluiu muito e, na mesma medida cresceram as incertezas a respeito da existência de transdutores perfeitos, especialmente microfones e alto-falantes.  Os inúmeros progressos no áudio, originaram um formidável leque de opções dos mais diferentes tipos de microfones, alto-falantes (Woofers, midrangers e drivers, tweeters) [v.a. 04] e caixas acústicas. O que não mudou é o fato de serem transdutores!

Minha desconfiança, de que são se pode falar num conceito de alta-fidelidade, além de se basear nas das teorias da percepção, especialmente a peirceana, também se baseia na irrefutável constatação de que, qualquer forma de captação, registro e reprodução está irremediavelmente mediada pela transdução [v.a. 01].

Toda e qualquer captação [v.a. 05] eletroacústica, eletromagnética, piezoelétrica é uma primeira transdução de energia e, portanto uma forma de representação do fenômeno físico, como sinal de áudio.

Toda e qualquer forma de registro (gravação), seja analógica e linear, digital e linear, digital não-linear [v.a. 06], é uma segunda transdução de energia, que uma vez captada e processada, se necessário, agora será convertida em outra forma capaz de ser armazenada. Na gravação analógica linear em fita magnética, as partículas de óxido de ferro (entre outros materiais) são magnetizadas de forma análoga ao sinal de áudio, que irão representar, durante a reprodução. Na gravação digital o sinal de áudio será representado por um código binário (conversores AD/DA, convertem o sinal analógico para digital e vice-versa), onde se pode ajustar a resolução desejada,ou sample rate [v.a. 08], de captura daquele, para então ser armazenado.

Toda e qualquer forma de reprodução de um sinal de áudio amplificado, com vistas a reconstituir um fenômeno sonoro, por quaisquer tipos de caixas acústicas, é uma terceira transdução de energia. Coincidência ou não, três tipos de transdução, que nunca ocorrem em outra ordem ou arranjo, encontram semelhanças com as três categorias fenomenológicas, que estão na base de teoria peirceana: primeiridade, secundidade e terceiridade.

4 – Questões técnicas, éticas e outras inusitadas, que nos levam a questionar: Alta-fidelidade à quê?

Faço a seguir um breve levantamento das diversas questões que, se consideradas adequadamente, nos levam a questionar não só a existência de uma alta-fidelidade, como sequer de alguma fidelidade.

4.1 – a cadeia de transduções do fenômeno sonoro

Apesar de já termos mencionado que a inexorabilidade da transdução é ao nosso ver o mais importante entrave, para se falar na existência de alguma fidelidade, convém assinalar os pormenores mais relevantes, para não deixar essa questão obscura.

4.1.1 – captação: a primeira transdução

Para que seja possível escutar a sonoridade de um instrumento acústico qualquer, com a maior aproximação possível do real, é preciso que estejamos num lugar silencioso, ao ar livre, sem ventos e, bem perto do músico. O mesmo instrumento quando executado numa sala qualquer, soará diferente, porque as ondas sonoras diretas e refletidas, chegarão aos nossos ouvidos em tempos diferentes (reverberação) e, as características acústicas da sala, ou seja o coeficiente de absorção [v.a. 09], resultante da diversidade de objetos presentes na sala, fará com que as ondas refletidas, nos cheguem aos ouvidos, em conteúdo de freqüências [v.a. 07] e harmônicos [v.a. 10], diferentes daquelas diretas, provenientes da fonte sonora. Então a possibilidade de se conhecer o som real do instrumento, existe mas é de difícil acesso e, ainda estaremos atados às características fisiológicas dos ouvidos, que variam de pessoa para pessoa.

No caso de instrumentos elétricos como guitarras e contrabaixos, e eletrônicos, como órgãos e sintetizadores, é impossível conhecer o som do instrumento, sem sua amplificação para reprodução, através de uma caixa acústica. Qualquer amplificador e caixa acústica reproduzirá um som, produzido por um instrumento, introduzindo nele suas próprias características e limitações elétricas, físicas e mecânicas; Inscrevendo no quali-signo, marcas inconfundíveis, que definirão o timbre daquela combinação específica.

Daí decorre a insistência, que guitarristas, contrabaixistas, entre outros, com que testam inúmeras combinações de instrumentos, captadores, e amplificadores, até obter uma sonoridade particular, que virá a ser uma parte de seu quali-signo. A outra parte é composta pelo seu modo inconfundível de tocar. O quali-signo de um músico, engloba o gesto e as características do instrumento e sua amplificação. Quanto à importância da gestualidade, na obtenção de uma sonoridade em particular, vejamos como Santaella a descreve:

De modo geral, em toda música produzida nos instrumentos tradicionais, a gestualidade do intérprete, sua performance, é fundamental para a realização da morfologia do som, ficando imprimida na forma sonora que esse gesto suscita. São essas formas que trazem a marca específica de um intérprete, a marca singular de seu gesto. (Santaella: 2001b, 151)

Como exemplo vívido, podemos citar a remarcável a sonoridade dos guitarristas Carlos Santana, Brian May (Queen), Ritchie Blackmore (Deep Purple) e dos brasileiros Sérgio Dias (ex-Mutantes) e Victor Biglione, entre outros.

Sejam os instrumentos acústicos ou elétricos/eletrônicos, para serem gravados, o som emitido precisa ser convertido em energia elétrica, para que seja gravado. Por melhores que sejam os transdutores nesta fase, os  microfones, e não importando seu tipo, é  o seu diafragma, que ao vibrar, produzirá uma corrente elétrica análoga às ondas sonoras (Valle, 1997).  Cada tipo de diafragma, com sua composição físico-química particular, possui propriedades únicas de reagir ao fenômeno sonoro, inscrevendo no quali-signo, já complexo de um músico tocando qualquer instrumento, outras características sonoras que não existiam antes. Aliado à isso existem as técnicas de microfonação, que permitem sonoridades variadas a partir de um único tipo. E existe no mundo uma enorme variedade de modelos de microfones. A pré-amplificação destes é outro procedimento que modifica sua sonoridade e, é claro, a sala onde ocorre a Gravação.

Diante desta cadeia de transduções, que intentam representar o fenômeno sonoro, já se pode perceber que um sinal de áudio captado e gravado, só pode corresponder em parte ao seu objeto. O que são essas transduções senão ação sígnica? E segundo Santaella, semiose e autogeração não são próprias do homem:

...A ação de gerar, cedo ou tarde, interpretantes efetivos é própria do signo, cujo caráter não é aquele de uma matéria inerte e vazia à espera de um ego auto-suficiente que venha a lhe injetar sentido. Além disso, a semiose não é antropocêntrica. A autogeração não é privilégio exclusivo do homem. Ela também se engendra no vegetal,  na ameba,  em Qualquer animal, no homem e nas inteligências artificiais. Para completar, a teoria dos signos e, por fim uma teoria sígnica do conhecimento. Todo pensamento se processa por meio de signos. ...(Santaella: 2000,  9)

Decerto que nesses transdutores e equipamentos não há pensamento, mas seu comportamento – reagindo ao fenômeno sonoro – é  tão previsível, na sua imprevisibilidade, quanto o pensamento. O que ao fim e ao cabo se constitui numa semiose.

4.1.2 – gravação: a segunda transdução

O sinal de áudio, já convertido em corrente alternada, para ser gravado em qualquer meio, tem que ser representado por um código, seja este binário, como na gravação digital, ou seja este analógico. Temos aqui outra cadeia de transduções, ou ação sígnica.

Apesar da grande sofisticação tecnológica que os equipamentos de gravação – mesmo analógicos – alcançaram, o armazenamento do sinal de áudio, se dá por um representação, que também imprime suas características no quali-signo, modificando-o. Não é por acaso que muitos artistas, produtores e técnicos, optam por gravar em gravadores multipistas analógicos e depois transferir para o domínio digital e lá finalizar. Só para citar um caso, o artista Lenine é um dos que preferem gravar em gravadores multipistas analógicos.

4.1.3 – reprodução: a terceira transdução

Só nos é possível conhecer as características de qualquer material gravado, através da sua reprodução, no que consiste converter uma codificação (analógica ou digital) em sinal elétrico e por fim amplificá-lo a um nível capaz de excitar alto-falantes e enfim, produzir som audível. Pois bem aí está a terceira transdução, sem a qual nos é impossível experienciar a reprodução do fenômeno sonoro. Novamente os transdutores, inscreverão no quali-signo suas características e limitações peculiares, de reproduzir a resposta em freqüências, do programa original de áudio, originando um novo quali-signo ainda mais complexo.

Ou seja, recolocando a questão de maneira bem clara: não existe a caixa acústica perfeita e nem pode existir, porque os alto-falantes produzem som vibrando um diafragma e, não há como evitar que, a ressonância da matéria que o compõe, interferira na reprodução, e se adicione ao quali-signo.

Esta última transdução se interpõe de modo tão inexorável que, considerando as teorias da percepção, somos levados a concluir que, é impossível para nós humanos, dotados deste órgãos sensoriais, termos acesso direto ao fenômeno sonoro. Sendo o nosso acesso ao fenômeno intermediado portanto, por melhores que sejam eles sejam –as caixas – não deixam de sê-los e nem de interferir fisicamente na reprodução sonora.

 

Mediações inevitáveis: captação, gravação e reprodução

Podemos concluir então que não nos é possível ter acesso direto ao fenômeno sonoro, nem quando gravamos nem quando reproduzimos. Para ser registrado e armazenado, um evento sonoro qualquer sofre a mediação de duas transduções obrigatórias: captação e gravação. Um evento sonoro gravado, para ser reproduzido, sofre duas outras transduções, a reconversão para sinal elétrico e deste para som audível. Enfim, seja na gravação ou na reprodução, o fenômeno sonoro somente é acessível, por via da mediação.

4.2 – a gravação multipistas e o fim do evento sonoro simultâneo

O termo alta-fidelidade começou a ser utilizado para expressar a condição de uma reprodução sonora fiel ao evento ou som original. Mas ao mesmo tempo traz embutida a crença talvez ingênua,  de que o estágio tecnológico alcançado naquele momento, perduraria indefinidamente ou, de que reproduções somente ocorreriam, de eventos que de fato existiram, sob a forma de concertos:

Assim, se Alta-fidelidade quer dizer ‘reproduzir um som tal como o original’, dentro do limiar psicológico do observador, podemos afirmar que a moderna audiotécnica já resolveu o problema bem satisfatoriamente. (Bittencourt e Bittencourt, 1965, p. 1)

Na medida em que a tecnologia evoluiu e especialmente com a invenção da gravação multipistas [v.a. 11], na década de 50, que permite a gravação de uma obra musical, em partes que são executadas e adicionadas aos poucos, tornando desnecessária a execução simultânea de vários instrumentos, o conceito de alta-fidelidade, a meu ver, foi se tornando cada vez mais inadequado.

As gravações que outrora eram feitas com a execução simultânea e é claro, com a presença física dos músicos, reduziram-se ao mínimo, permanecendo apenas os casos de concertos ao vivo, orquestras em estúdios, performances acústicas com reduzido número de instrumentos, como o jazz por exemplo. Com a gravação multipistas, deixou de existir o evento sonoro simultâneo, por questões de ordem prática. Pois é mais fácil refazer um pequeno solo de guitarra mantendo as outras pistas já gravadas, intactas, do que se expor ao risco de realizar um nova sessão, com todos os músicos, onde outros erros de execução podem ocorrer. Com a inexistência do fenômeno sonoro, como evento que teve lugar no espaço/tempo, pode-se falar em alta-fidelidade à quê?

4.3 – a gravação multipistas e eventos sonoros inexistentes

A gravação multipistas trouxe ainda uma situação inusitada, entre outras. Um músico, desde que fosse um multi-instrumentista, passou a poder gravar suas músicas, ou seu álbum inteiro, sem precisar recorrer a outros músicos. Arnaldo Baptista (um dos três componentes de Os Mutantes), após o fim da banda, e já na sua carreira solo, gravou um disco (Baptista, 1982) onde tocou todos os instrumentos. Isto só é possível com a gravação multipistas. Numa situação tão radical como esta, existe alta fidelidade à quê?

Outro hábito gerado pela gravação multipistas, em todo o mundo, é a gravação da voz principal, apenas quando todos os instrumentos já foram gravados. No máximo, é gravada uma voz guia, para se ter uma idéia aproximada, da peça musical na sua provável versão final, enquanto a gravação progride. Desta forma, quase a totalidade das obras gravadas, não foram decorrentes de um evento sonoro simultâneo. Existirá então, na reprodução, uma alta-fidelidade à quê?

Há ainda, uma série de obras gravadas em condições especiais e inusitada. Nos álbuns de Frank Sinatra, Duets  e Duets II (Sinatra, 1993 e 1998, cf. Tower Records, site) após a gravação de toda a base, , as vozes de Sinatra e do convidado eram gravadas, enquanto eles cantavam em estúdios diferentes, situados em cidades e países, separados por milhares de quilômetros e, em tempo real, através da fibra ótica (Ednet). Esta inclusive, foi a primeira gravação dessa natureza, de acordo com Phil Ramone, o produtor (Ramone, 2001, site).

No Brasil tivemos a regravação de clássicos Elis Regina após sua morte, preservando a voz original e refazendo a parte instrumental. Nos EUA vimos Natalie Cole cantando ao lado de Nat King Cole, falecido décadas antes. Num álbum recente e ao vivo, do Paralamas do Sucesso (Vamo batê lata), o CD bônus continha 4 músicas gravadas em estúdio. Dentre elas, a faixa Saber amar, teve a participação de Ernie Watts (E.U.A.) no Sax tenor, mas os músicos do Paralamas, não tocaram nem gravaram na presença dele, nem ao mesmo tempo que ele. As gravações ocorreram separadamente no Rio de Janeiro e Los Angeles. (Paralamas, 1995, encarte do CD).

4.4 – Ética: a gravação multipistas e a maculação do evento sonoro

Até então citamos casos em que, mesmo não existindo o evento sonoro simultâneo, ainda fica preservada alguma autenticidade, na representação das características de primeiridade, do estilo a da obra de um artista. Mas, e nos casos em que a autenticidade, maculada com o retoque posterior? Trechos de instrumentos e/ou vozes, são refeitos em estúdio, em substituição aos que, de algum modo, não foram registrados satisfatoriamente ou apresentaram erros de execução durante o concerto. Isto é possível graças à gravação multipistas, onde instrumentos, são gravados em pistas separadas. Há ainda muitos casos em que, diversos instrumentos são adicionados em estúdio, para acrescentar ao evento sonoro gravado, características que de fato não teve. Esta é uma prática condenada por inúmeros artistas em todo mundo.

O evento sonoro e simultâneo, que então teria existido de fato, foi completamente maculado, com acréscimos posteriores, sem que o público tenha sido informado a respeito, e que pensa estar adquirindo um obra totalmente registrada ao vivo, o que suscita a mesma questão, porém agora com a preocupação ética: alta-fidelidade à quê? De que modo eqüivale ao registro do evento original?

4.5 – Ética: tecnologia e criação de simulacros de primeiridade

 As características de primeiridade de um artista, demonstradas por ele e percebidas por nós, durante um concerto, ou durante a reprodução de uma obra gravada, constituem a personalidade musical, o estilo próprio, que nos permite diferenciá-lo de um outro. De plena consciência disso, a indústria cultural, na sua sede de produzir novos artistas de sucesso (entenda-se muitas vendas), se utiliza da tecnologia para criar artistas com uma personalidade predominantemente fictícia, simulacros. Contudo, é exatamente nas apresentações que ficam evidentes a inconsistente personalidade musical, quando são complementadas com artifícios tecnológicos.

Como um artista pode compor e gravar uma obra sem usar um único músico,  além de si mesmo, pode fazê-lo também ao vivo, num concerto. Os exemplos mais recentes ocorreram nas apresentações de diversas bandas, no Rock’n’Rio III, em Janeiro de 2001, no Rio de Janeiro. Algumas bandas se utilizaram do Playback, recurso onde o artista canta, em sincronia com a reprodução de músicas gravadas. É um recurso muito comum nos programas de auditório, da TV aberta, por questões de custo.

Casos mais graves podem ocorrer como o caso da artista Britney Spears em sua apresentação no mesmo festival. O tão esperado concerto, pelos seus fãs – na maioria adolescentes – foi decepcionante. Inteiramente em Playback, algumas vezes, com sua voz ao vivo mixada, outras vezes inteiramente gravada... A cantora Sandy, da dupla Sandy & Júnior, que também se apresentou no mesmo festival, declarou à Isto É, em entrevista:

 ISTOÉ – Você ficou supresa com a Britney Spears usando Playback ?

Sandy – Saquei na hora! As pessoas comentaram que foi uma falta de respeito com o público. Eu acho que, se ela podia fazer ao vivo, deveria ter feito. Foi mancada da Britney, mas não foi só ela que usou.

ISTOÉ – Você e Júnior usaram?

Sandy – Temos um recurso de computação chamado Protools. No Rock’n Rio, não foi preciso usar por que estávamos com 36 músicos no palco.   Quando o show  é apresentado em um circuito, não dá para levar tudo.   A banda fica com 12 músicos e a gente bota alguns instrumentos a mais, com o Protools, para não ficar aquela música magra. Para dublar a nossa voz, nunca. (Sandy, 2001, Isto é, n. 1641, p.11)

 

Pois bem, a busca da alta-fidelidade, na captação, e reprodução, aplicada a um concerto como este, num festival desse porte, estaria baseada na reprodução fiel de quê?

4.6 – Ética: tecnologia e criação de eventos sonoros virtuais

Por fim, entre as questões puramente técnicas, temos a gravação digital multipistas (em Hard disk) não-linear, com a interface MIDI (Musical Instrument Digital Interface), que permite a gravação de uma obra inteira, sem utilizar um único músico. Um aplicativo de sequenciamento MIDI executa uma composição com vários instrumentos, cujos timbres estão armazenados na memória ROM de placas de som para de computadores. Com isso um músico, pode compor uma obra inteira, sem executar um único instrumento de fato, ou fazendo-o apenas parcialmente, Ao reproduzir uma música que foi composta e gravada assim, existirá alta-fidelidade à quê?

4.7 – Processamento de sinal de áudio

Numa gravação em estúdio, muitos instrumentos após a fase de captação e gravação, são processados de modo a ser obter uma certa textura, tonalidade, às vezes até modificando seu envelope ou A.D.S.R. (attack, decay, sustain, release) [v.a. 12], que em resumo, são as características de quaisquer notas musicais.

Não podemos deixar de registrar aqui que uma característica extremamente interessante é que, na medida em que a tecnologia evoluiu, aumentou consideravelmente a presença dos sons graves e subgraves – muitas vezes obtidos com o processamento de sinal – na  maioria das obras.

Especificamente para captação e gravação de vozes, existem ainda tantos recursos técnicos para adição de harmônicos, afinação, transposição (sem julgar aqui, sua adequação), que modificam o evento sonoro captado e gravado, a tal ponto, que dificultam sua execução ao vivo, em condições semelhantes. Como será possível existir alta-fidelidade na reprodução de uma gravação feita desse modo? Será alta fidelidade à quê?

4.8 – Propriedades fisiológicas do ouvido humano.

Uma vez que assinalamos as diversas questões que envolvem a problemática do evento sonoro e, da sua captação e reprodução, não poderíamos de modo algum, suprimir do rol de questões aqui levantadas, a interferência das características fisiológicas da audição, no processo de percepção do evento sonoro.

Entre as diversas questões, há duas de maior interesse: A curva de audibilidade humana e, a capacidade do ouvido de nos fazer ouvir sons, além daqueles que compõem um evento sonoro qualquer. Apesar de haverem  outras questões importantes, fiquemos por ora com estas.

4.8.1 –Aas curvas fletcher & munson e robinson & dadson

A curva de audibilidade do ouvido é uma questão bastante complexa. Ela varia de indivíduo para indivíduo, pode ser expandida, ou seja, podemos aprender a escutar e, varia conforme a idade, ou seja, nossa capacidade auditiva decresce na medida em que a idade aumenta. Aos 25 anos a capacidade auditiva alcança o seu ápice e inicia o declínio. Este declínio acentua-se cada vez mais na medida em que a idade avança. E há mais uma questão bastante significativa: este declínio é mais acentuado nos homens do que nas mulheres. Segundo Beranek Acoustics apud Bittencourt e Bittencourt (1965, p.14), aos 55 anos por exemplo, na freqüência de 4.000 Hz, as mulheres apresentam uma perda auditiva de 15 dB, enquanto os homens, uma perda de 25 dB. Já aos 70 anos, em 4.000 Hz, as mulheres apresentam uma perda de 18 dB e, os homens, 48 dB.

De acordo com classificação dos signos, de Charles Sanders Peirce, todo pensamento é uma forma de representação e, toda representação é um signo. Signos intentam representar seus objetos, ou seja, tudo aquilo que nos bate à porta da percepção. Mas segundo Santaella, um signo não pode representar totalmente o seu objeto:

“ Quando percebemos algo, estamos alertas a algo que está lá fora e se apresenta a nós e que não se exaure no processo perceptivo. Isto quer dizer: o som que ouço no rádio, enquanto escrevo, continua existindo independente da minha audição. E minha audição, no caso, não será nunca capaz de captar todos o traços e aspectos desse som. Haverá sempre uma pluralidade de atributos e caracteres que cada percepção particular sempre perderá, mesmo que o ouvinte, no caso deste exemplo, fosse um grande especialista em música.” (Santaella: 1998,  96)

Quando se trata de áudio, esta não é uma mera afirmação abstrata e passível de discussão. O ouvido humano devido às suas características fisiológicas, não pode e não o faz a captura do fenômeno sonoro na sua totalidade. A sensibilidade do ouvido varia conforme a freqüência e de acordo com a intensidade sonora, conforme foi demonstrado pela primeira vez em 1933 no trabalho de Fletcher & Munson, dos Laboratórios Bell (EUA), denominado contornos de audibilidade equivalente (Equal Loudness Contours). Este trabalho foi refinado em 1956 por Robinson & Dadson, e veio a ser adotado pelo ISO (International Organization for Standardization), como ISO  Recommendation 226 e é conhecido como Equal Loudness Contours (Ballou, Ed. 1991, 33).

FIGURA  01

 

Curvas de audibilidade equivalente para tons puros em um campo de som frontal para humanos de média acuidade auditiva.

Equal Loudness Contours for pure tones in a frontal sound field for humans of average hearing acuity determined by Robinson & Dadson. (Ballou: 1991, p. 33)

A curva de 90 phons, apresenta sempre o mesmo valor em qualquer freqüência, ou seja 90 phons. Entretanto ela não corresponde ponto a ponto às intensidades sonoras em decibéis ou dB/SPL.

Esta curva de 90 phons, em destaque, e que corresponde a 90 dB/spl em 1.000 Hz, equivale aos seguintes N.I.S. para outras freqüências, indicadas como pontos A, B, C, e D:

·  90 phons /40 Hz = 107 dB/spl

·  90 phons/400 Hz = 86/87 dB/spl

·  90 phons /4.000 Hz = 80 dB/spl

·  90 phons/10.000 Hz = 94 dB/spl

 

Na Fig. 01 apresento o gráfico com o trabalho de Robinson & Dadson, que redesenhei, inserindo 4 indicadores identificados como pontos A, B, C e D, para facilitar a compreensão da explicação que se segue.

Tomando-se como exemplo a curva de 90 phons, que em 1.000 Hz equivale a 90 decibéis (dB), podemos deduzir o seguinte: Um dado som que estejamos escutando e que tenha um nível de intensidade sonora médio de 90 dB, não é capturado pelos ouvidos com linearidade para todas as freqüências audíveis, mas sim obedecendo a uma curva de sensibilidade, que varia conforme a freqüência. Na figura indicamos 4 pontos. O ponto C está exatamente na zona de melhor audibilidade do ouvido que é 4.000 Hz por isso o usaremos como referência, nas explicações.

Quando estivermos escutando um som qualquer  com  4.000 Hz (C) ao mesmo tempo que um outro de 10.000 Hz (D) e, para escutarmos os dois com a mesma sensação auditiva de intensidade sonora, (noção que chamamos de volume) será preciso que o som de 10.000 Hz, esteja maior em 15 dB, que o de 4.000 hz. Comparando o ponto (C) com o ponto (B), vemos que um dado som de 400 Hz precisa estar com + 6 dB de intensidade, que o de 4.000 Hz, para ambos serem percebidos com mesma intensidade. Como o  decibel  [v.a. 16] não  é uma  unidade de medida linear, mas sim logarítmica, a cada + 3 dB dobra a intensidade. Então +6 dB significa uma necessidade de intensidade de volume 4 vezes maior.

Comparando o ponto C com o A, em 40 Hz, vemos que nos graves a situação é “grave”: Um som de 40 Hz precisa estar com + 27 dB, que um outro de 4.000 para ambos serem escutados com mesma intensidade.  Estes + 27 dB equivalem à uma necessidade de intensidade sonora 512 vezes maior.

Em outras palavras isso vem demonstrar que a nossa capacidade de perceber os sons não é a mesma para todas as freqüências, ou seja nosso ouvido não possui uma curva de resposta linear. Ele recorta de um modo característico e conhecido, a informação auditiva que nos chega. Existe portanto um modo de escutar que extrai do evento sonoro, apenas uma parte do seu real conteúdo em freqüências. Desse modo o fato de o signo só poder representar em parte o seu objeto, em se tratando de áudio, é uma questão pré-definida a priori pelas características fisiológicas da audição e portanto, fora de nosso controle.

Peirce não chegou a conhecer o trabalho de Fletcher & Munson realizado em 1933, nem o refinamento deste, feito em 1956 por Robinson & Dadson. É bem provável que ele mesmo quando previu que o signo não poderia representar o seu objeto inteiramente, não estivesse se referindo à resposta em freqüências do ouvido, mas é impressionante como as curvas de audibilidade, que  recortam o fenômeno sonoro, coincidem com a sua teoria dos signos e da percepção, no que diz respeito ao modo como o signo representa o seu objeto.

4.8.2–Aa capacidade do ouvido de nos fazer ouvir sons além dos que estão presentes no fenômeno.

Ao descrever as características do ouvido humano, Braun nos informa que  temos a capacidade de ouvir além dos sons principais que nos chegam, os sobretons ou harmônicos e, tons de combinação, como podemos ver nessa passagem que apesar de longa, é por demais reveladora:

CITAÇÃO

Quando uma onda chega ao ouvido humano, além de ter a sensação de ouvir a freqüência do som, se tem a sensação adicional de ouvir outros sons, que não chegaram ao ouvido e que têm freqüências 2, 3, ... vezes a freqüência do som que chegou.  Por exemplo, se recebermos uma onda de freqüência de 440 Hz (que corresponde a uma nota la), teremos a sensação de ouvir, além desta nota, sons de freqüências 2 x 440 Hz = 880 Hz, 3 x 440 Hz = 1320 Hz, etc. Sons com estas frequëncias se chamam sobretons ou harmônicos.

Quando chegam ao ouvido vários nos de diferentes freqüências, ocorre outro fenômeno que é muito curioso. Suponhamos que chegam aos ouvidos dois sons com freqüências de 500 Hz e de 800 Hz [grifo nosso]. O ouvido tem a sensação de ouvir, além das freqüências que chegam, sons que têm as seguintes freqüências:

800 Hz – 500 Hz = 300 Hz,

800 hz, + 500 Hz = 1300 Hz,

2 X 800 Hz – 500 Hz = 1600 Hz – 500 Hz = 1100 Hz

2 X 800 Hz – 2 X 500 Hz = 1600 Hz – 1000 = 600 Hz

2 X 800 Hz + 500 Hz = 1600 Hz + 500 Hz = 2100 Hz, etc [grifo nosso].

Os sons com estas freqüências se chamam tons de combinação. O som do tom de combinação que se percebe com maior intensidade e o que tem freqüência igual à diferença das freqüências dos dois sons presentes (em nosso caso, o de 300 Hz); os outros tons de combinação que se produzem têm intensidades muito pequenas e em certas ocasiões são difíceis de perceber. (Braun, 1991, p. 71, trad. nossa)

Devo registrar aqui que, não farei considerações a respeito dos sobretons ou harmônicos, pelo fato de que já é uma característica conhecida e adequadamente considerada no âmbito do áudio e sonorização.

A informação que Braun nos apresenta, a respeito da capacidade fisiológica do ouvido, de nos dar a sensação de ouvir tons de combinação, é surpreendente. Se no momento em que o som é  convertido em impulsos nervosos, há uma adição de informação, de modo que nós escutamos mais do que o que de fato está lá fora, como se pode falar em alta-fidelidade? Se, nas três inexoráveis transduções, pelas quais passa o fenômeno sonoro, houvesse a alguma possibilidade de alcançarmos o “grau zero” de temperatura ao qual Peirce se referiu, conforme a passagem de Santaella abaixo, ainda assim estaríamos sujeitos a perceber algo além do que faz parte do fenômeno sonoro:

CITAÇÃO

... quanto mais tentamos nos aproximar do objeto dinâmico, mais mediações vão surgindo. O único recurso que se tem é ir mudando a roupagem da representação por outra mais diáfana. Mas há um limite para isso, ‘ uma realidade última como um zero de temperatura’ . (Santaella: 1998,  88)

As duas questões que levantamos, quando consideradas adequadamente, vêm encorpar ainda mais os argumentos contrários à possibilidade de existência de uma concepção de alta-fidelidade. Por um lado a nossa audição, pelas características que lhe são próprias, recorta o evento sonoro de um modo específico; por outro, a partir desse recorte que percebemos, adicionamos diversos outros sons inexistentes no evento sonoro original. Como então se pode falar num conceito de alta-fidelidade?

5 – A percepção do evento sonoro à luz da teoria da percepção peirceana

Acreditamos ter levantado até o momento uma série de questões que a meu ver, impedem qualquer intenção de se elaborar um conceito de alta-fidelidade. Não dá para se pensar nem mesmo em alguma fidelidade. O evento sonoro que nos produz um estímulo não é nem mesmo semelhante ao que percebemos, é outro! 

QUADRO  1

 

                             

Passaremos agora à aplicação da classificação de signos de Peirce ao evento sonoro e a nossa percepção dele, de acordo com a teoria da percepção Peirceana, baseado no diagrama proposto por Santaella (1998: 108), que apresentamos no quadro 1.

 

FIGURA  02

   
 

   

A semiose perceptiva, conforme o diagrama proposto por Santaella (1998: 111) pode então ser representada como na figura 02.

5.1 – O phaneron

Segundo Peirce (CP 8.297 apud Santaella, 2001b: 33) phaneron é qualquer coisa que aparece de qualquer modo à mente, que todas as pessoas, em condições físicas e psíquicas normais, pode observar. Phaneron portanto é o evento sonoro que aparece em dois momentos, no processo de captação, gravação e reprodução de um evento sonoro. No primeiro momento temos a ocorrência original do evento no tempo e no espaço determinado, e que nunca de repetirá do mesmo modo. A partir desta ocorrência, tem início a primeira semiose, através da qual o evento será captado e gravado em algum suporte. No segundo momento, temos a reprodução do material gravado que, uma vez decodificado e convertido em sinal elétrico, colocará em movimento os diafragmas dos alto-falantes, produzindo um novo evento sonoro, que intenta representar o primeiro, ou melhor a representação dele, tal e qual foi captado e gravado. Este segundo momento corresponde à segunda semiose.

5.2 – Representâmen

Segundo Pinto, “... um representâmen é um signo ainda não atualizado como signo para um sujeito, isto é, algo que já participa de uma relação de representação sem, contudo, ter sido percebido como signo”(1995, 46).

Na reprodução de eventos sonoros podemos identificar a presença do representâmen, logo após a primeira semiose, quando uma representação do evento sonoro original é gravada em qualquer suporte, ficando então pronta para ser reproduzida; pronta para ser atualizada num signo.

5.3 – O evento sonoro enquanto signo

Santaella propõe a primeira classe de signos, a dos quali-signos icônicos e remáticos, como dominante para a sonoridade, mas alerta que deve ser tomada como ponto de referência-limite “...visto que nesse nível, estamos lidando apenas com possibilidades não atualizadas” (Santaella, 2001b: 106). Podemos extrair da sua proposição uma preocupação em não se tomar uma classificação como estanque, imutável, ou ainda impossível de se combinar com outras. Portanto, a classificação dos eventos sonoros enquanto signos, que utilizo parte daí.

Quando escutamos um evento sonoro musical previamente gravado e que já nos é familiar, por se tratar de um evento singular, único e irrepetível, ocorrido num período de tempo, ele é um sin-signo, indicial e dicente. Como a secundidade incorpora a primeiridade, este traz dentro de si, um quali-signo, icônico e remático, sendo este, uma somatória de diversos outros signos de mesmo tipo, que ocorrem simultaneamente, como é característico da música, tanto ao vivo, como gravada. Estes por sua vez representam (cada um deles) a marca sonora inconfundível de um músico (a sonoridade característica dele), somada ao seu gesto. A música como um todo (não apenas um trecho), numa reprodução aqui e agora, também incorpora um quali-signo, icônico e remático, que consiste na somatória de características que nos permite distinguir um intérprete de outro, pelo seu gesto (modo de cantar e/ou tocar), estilo musical e pela forma de arranjar e compor.

Se ao contrário, o evento sonoro, cuja reprodução está em andamento, nos é desconhecido (mesmo que o intérprete e sua obra pregressa já nos seja familiar) o fundamento do signo se alternará com freqüência entre um sin-signo icônico e remático, um sin-signo indicial e remático e um sin-signo indicial e dicente, em muitos momentos desta primeira audição, visto que o puro aspecto qualitativo da música, que está predominando, em alguns momentos nada estará representando (icônico e remático) e nem trazendo informações sobre quaisquer objetos fora dele; às vezes estará representando algo, mas ainda sem quaisquer referência sobre objetos fora dele (indicial e remático); às vezes representando algo e com referência a objetos fora dele (indicial e dicente). Um exemplo muito claro deste último tipo, ocorre quando a música rica em subgraves (tons e harmônicos compreendidos entre 16 e 50 Hz) está sendo reproduzida num sistema de som, numa intensidade sonora acima da média, digamos 90 dB numa sala de aproximadamente 4 x 4 m., que disponha de um subwoofer [v.a. 13], capaz de reproduzir bem estas freqüências. Estes sons quando reproduzidos nesta intensidade sonora (ou acima) têm a propriedade de fazer vibrar os objetos ao seu redor e também de excitar o tato da nossa pele, o que quer dizer que os escutamos não só com os ouvidos mas com o corpo. Neste caso predominará inteiramente a secundidade.

O evento sonoro como puramente som é um legi-signo que se manifesta numa réplica, um sin-signo, visto que sua ocorrência singular no espaço e tempo é regida pelas leis da acústica.

A música gravada, enquanto possibilidade de se colocar um CD num microsystem e exibi-lo, é um sin-signo que por sua vez é a réplica de um legi-signo, tendo em vista que há uma lei geral, segundo a qual se pode gravar um CD e reproduzi-lo.

Na reprodução de um evento sonoro gravado, uma música em particular, o objeto dinâmico é a sonoridade ocorrida no tempo e no espaço, uma ocorrência singular, aquilo que ouvimos. Na semiose perceptiva ele corresponde ao percepto. É o fenômeno que está lá e se força sobre nós compulsivamente e continuará lá, independente da nossa vontade. Mas para tratarmos de som é mais apropriado nos referirmos no passado, porque um som qualquer quando percebido, já ocorreu, vibrou as moléculas de ar criando ondas sonoras que se propagaram e chegaram até nossos ouvidos. Não é possível parar uma reprodução musical, nem mesmo nos equipamentos analógicos como os toca-discos, para “olhar” para uma nota ou trecho como fazemos na exibição de um programa qualquer gravado em vídeo.

O objeto imediato desta semiose corresponde ao percipuum, na semiose perceptiva. Ele apreende uma parte do percepto e “ ...isso quer dizer que o objeto imediato tem algum nível de coincidência com o objeto dinâmico. Ele é uma emanação do objeto dinâmico, um certo modo de torná-lo mediatamente presente”(Santaella, 2001b, 46). Uma das razões prováveis, pelas quais a a apreensão do objeto dinâmico é apenas parcial, é a atenção focalizada, regulada e dirigida pelos nossos interesses pessoais voluntários – nossa  capacidade intelectual de interpretá-lo – e  involuntários – o  fluxo da evolução humana, adaptando o homem ao meio; capacidade fisiológica (Braun, 1991) – , conforme se pode inferir a partir da afirmação de Santaella: “Daí Peirce ter dito que só percebemos o que estamos equipados para interpretar. Ou seja só ouvimos o que podemos ouvir, só entendemos o que podemos compreender” (1998: 99). Quanto à capacidade fisiológica, no estágio atual da evolução humana, já é possível perceber nos textos mais recentes dos intérpretes de Peirce, que a noção de representação parcial do objeto no signo, é determinada pelas características do sistema sensório, pelo menos em grande parte e, fora de nosso controle, tal como procurei demonstrar com as curvas de audibilidade de Fletcher & Munson. Vejamos esta passagem de Santaella:

CITAÇÃO

Tão logo o percepto atinge nossos sentidos, ele é imediatamente convertido  percipuum. Todas as espécies estão equipadas geneticamente com sistemas sensórios específicos que filtram o estímulo exterior ou percepto de uma determinada maneira, impondo um certo tipo de tradução perceptiva àquilo que se apresenta aos sentidos. Ao ser traduzido de acordo com o potencial e limites que um dado sistema sensório lhe impõe, o percepto se torna percipuum. (Santaella: 2001b, 107 e 108)

 

O percepto ao ser traduzido em percipuum pode se apresentar como uma “mera qualidade de sentimento, vaga, difusa, simples imediaticidade qualitativa imprecisa e sem limites” correspondendo  à categoria de primeiridade; “de forma surpreendente, conflitante” correspondendo à categoria da secundidade; ou “em concordância com os esquemas gerais que regulam os nossos juízos de percepção” (Santaella, 2001b: 109).

Aplicando os conceitos à audição e interpretação de um evento sonoro gravado, de um intérprete que já conhecemos, mas cuja obra é inédita e está sendo escutada pela primeira vez, podemos detectar a presença do percipuum em nível de primeiridade por curtos instantes e, na medida em que, o que se apresenta à nossa percepção, é desconhecido. Tão logo venhamos a identificar uma linha melódica, mesmo que estranha, desconhecida, passamos à secundidade, que evidentemente já incorpora a primeiridade. Se esta linha melódica se mantiver de forma previsível, de acordo com as convenções musicais, passamos à terceiridade. A cada rompimento, mudança ou transposição desta linha melódica, que se apresentar à nossa percepção como imprevisível, desconhecida, retornamos à primeiridade. o ao Uma vez conhecida a música, nas audições seguintes, predominará a terceiridade com os nossos juízos perceptivos.

 Mas não podemos esquecer que o som é evanescente e que a nota o acorde que acabou de ser apreendida no percipuum já não está mais presente. A nota ou acorde seguinte dará origem a outro  percipuum e não necessariamente do mesmo tipo. Como o evento sonoro é dinâmico e seqüencial, cheio de altos e baixos, acordes de instrumentos que aparecem em momentos específicos e desaparecem, temos uma seqüência de objetos imediatos do tipo percipuum, onde há momentos em que predomina uma das categorias três categorias, primeiridade, secundidade e terceiridade, mesmo nas audições seguintes onde a música já nos será familiar. Como o Percipuum nunca captura o percepto na sua totalidade, nas audições seguintes, sempre haverá a possibilidade de percebermos novos trechos ou acordes de algum instrumento que não havíamos percebido nas audições anteriores.

Essa característica peculiar do objeto imediato capturar apenas parte do objeto dinâmico, no meu entender é a questão chave para se compreender porque não é possível existir alta-fidelidade. Para tanto demonstramos a seguir o comportamento do objeto imediato nas semioses anteriores – captação e gravação – além de nesta terceira transdução.

Na primeira transdução, que corresponde à captação do evento, o objeto dinâmico também é apreendido no objeto imediato parcialmente, visto que as propriedades físicas do material do qual é feito o sensor em questão (captadores e microfones) determinam um comportamento específico de suas propriedades elétricas, e este conjunto, interagindo com outros circuitos no console de mixagem, bem como com outros adicionados externamente, resulta numa representação do objeto dinâmico no objeto imediato, que por mais que possa guardar  semelhanças, não deixa de ser outro bem diferente. Esta diversidade entre objeto dinâmico e objeto imediato, fica muito mais evidente quando consideramos que quase a totalidade das captações de eventos sonoros destinados à gravação, sofre algum tipo de processamento prévio. Daí se pode concluir que não há representação fiel.

Na segunda transdução, o objeto dinâmico é o sinal elétrico proveniente do console de mixagem, após a captação e processamento (mesmo que mínimo) e está então, apto para ser representado num código análogo ou binário, para então ser armazenado. Este objeto dinâmico é então apreendido, novamente de forma parcial, no objeto imediato conforme as limitações impostas pelas características do suporte (gravação analógica em fita magnética) ou pelos circuitos conversores AD/DA (analógico/digital e digital/analógico). Se assim não o fosse, nas condições atuais de recursos tecnológicos para captação e gravação, os diversos fabricantes, não estariam migrando para uma plataforma com resolução de 24 bits e amostragem de 96 kHz, contra os atuais 16 bits e 44.1 kHz do CD de áudio.

Apesar de nem ser o momento e local apropriado, não posso me furtar a pelo menos, registrar que esta segunda transdução (como muito provavelmente as outras) segundo pude constatar, se subdivide em outras três obedecendo a lógica das categorias Peirceanas. Como durante a gravação no modo multipistas, o conteúdo de cada pista pode ser ouvido isoladamente e, o evento registrado pode ser reproduzido com qualquer combinação de volume entre as pistas, resultando num evento sonoro particular e que depende de ajustes específicos entre canais (e devemos considerar também aqui os conteúdos ausentes que ainda serão gravados) temos uma 2.1 mera possibilidade de morfologia sonora; Uma vez finalizado o processo de captação e registro e, estando a matriz multipistas pronta para ser mixada, temos a 2.2. possibilidade morfológica sonora atualizada. Por fim temos a 2.3 morfologia sonora concretizada, regulada por uma lei, quando toda a informação registrada em múltiplas pistas foi mixada para resultar num evento sonoro único, num dado formato. Todas as vezes em que for reproduzido, o será do mesmo modo.

Olhando agora para a terceira transdução sem focalizar a semiose perceptiva, vemos que o CD contendo um evento sonoro codificado, quando posto em execução, criará um objeto dinâmico, que corresponde à uma ínfima quantia de energia elétrica alternada que intenta representar o evento sonoro gravado. Essa energia precisa ser pré-amplificada para então ser amplificada, pelos amplificadores, até um nível capaz de excitar os diafragmas dos alto-falantes. A pré-amplificação é outra semiose com outra apreensão parcial do objeto dinâmico no objeto imediato. A amplificação final também é outra semiose, também com outra apreensão parcial do objeto dinâmico no objeto imediato.

Outra prova inequívoca, da apreensão parcial do objeto dinâmico no imediato, mas que parte do mesmo pressuposto, é a existência de uma técnica de amplificação, que no final das contas, aumenta a “resolução” do objeto imediato. Trata-se da multi-amplificação, onde o sinal de áudio após a pré-amplificação, é filtrado e separado em canais que, usualmente vão de 2 até 5, cada um contendo uma parte do sinal de áudio, que no caso de cinco, correspondem a subgraves, graves, médios-graves, médios e agudos. Com isso, um dado amplificador ao invés de fazer um esforço enérgico para amplificar todo o sinal de áudio (contendo desde os sons mais graves aos mais agudos) sem distorcer, fará o mesmo esforço para amplificar apenas uma faixa, o que resultará numa distorção muito menor. Em se tratando de amplificadores oriundos de projetos reconhecidamente eficientes, é comum escutar a afirmação, no ramo de sonorização profissional, de que quanto menor a faixa entregue ao amplificador, menor será a taxa de distorção. Usualmente fala-se em um zero a mais, na taxa, por cada via adicionada. Por ex.: se um amplificador apresenta uma THD (Total Harmonic Distortion) de 0,01 quando operando em uma via; em duas vias será de 0,001; (Bortoni, 2000).

Contudo, em se tratando da tão propalada alta-fidelidade ou sistemas High end esta é uma questão relegada ao segundo plano ou muitas vezes esquecida, muito provavelmente pelos interesses dos fabricantes em manter a simplicidade dos sistemas, cercando apenas quatro pontos chave: Fontes de programas (CD players, tape-decks, etc.), pré-amplificadores, amplificadores e caixas acústicas. É sabido que o quinto elemento – a multiamplificação – requer conhecimentos para se ajustar corretamente e que um pequeno desajuste acidental, deteriora o resultado do sistema inteiro e, infelizmente muitos audiófilos ou não têm conhecimento para realizar os ajustes, ou simplesmente não querem ter esse tipo de compromisso.

Bom, se mesmo após todos os argumentos que levantei sobre a impossibilidade de existência da alta-fidelidade tal como é conhecida hoje, ainda fosse possível de algum modo se falar num conceito de alta-fidelidade, esse modo teria que obrigatoriamente, implicar no uso da multi-amplificação e extinguir definitivamente o uso de filtros passivos (que normalmente ficam dentro das caixas acústicas), para que com a ampliação da resolução de captura do objeto dinâmico no objeto imediato, nos seja possível uma aproximação máxima como um grau zero de temperatura à que Peirce se referiu. Infelizmente não é o que ocorre. A maioria dos sistemas comerciais não utiliza a multi-amplificação, mas divisores passivos dos mais diversos tipos com todos os seus problemas e inconvenientes, fabricantes diversos têm preferido pesquisar, desenvolver e fabricar os mais perfeitos cabos, conectores, sonofletores, até mesmo os divisores passivos e, os mais sofisticados (e caros) amplificadores, relevando uma questão simples e há muitos anos conhecida.

 Para finalizar a abordagem sobre os objetos dinâmico e imediato, vejamos a terceira transdução de modo genérico, sem considerar o evento sonoro específico na qual se materializa. A reprodução de evento sonoro qualquer, já pré amplificado e amplificado dá origem à um outro objeto dinâmico, uma corrente elétrica alternada várias vezes maior do que a inicial, capaz de excitar os alto-falantes. Esta é capturada pelo objeto imediato dentro dos limites impostos pelo conjunto magnético, enrolamento da bobina móvel, resistência, impedância, tipo de fio utilizado, compliância do conjunto móvel, material do diafragma, enfim um conjunto de características que determina o comportamento de um alto-falante em termos de sua curva resposta em freqüências.

Para dar conta de um método de classificação dessas características, com o propósito de se obter conhecimento acerca da previsibilidade desse comportamento dos alto-falantes, A. Neville Thiele desenvolveu um método e apresentou em 1961 na Radio and Eletronic Engineering Convention em Sidney, Austrália que veio mais tarde a ser ampliado por Richard H. Small e amplamente disseminado graças à proliferação dos computadores pessoais (Silva, 1996). As informações obtidas com este método são conhecidas hoje como parâmetros Thiele & Small [v.a. 14]. Usando aplicativos de simulação de desempenho de alto-falantes em caixas acústicas e, de posse dos parâmetros fornecidos pelo fabricante, é possível conhecer o comportamento de um dado alto-falante, numa caixa, antes de construí-la, e assim corrigir inúmeros problemas, ainda na fase do projeto e ensaio de desempenho.

Pois bem, utilizando um desses aplicativos, o Bassbox 6 for Windows, que nos permite fazer modificações em alguns parâmetros, de modo que as alterações se reflitam nos demais, e simulando o desenvolvimento de um projeto aleatoriamente, nós nos deparamos com a prova mais irrefutável, de que as características físicas e elétricas determinam um modo particular, segundo o qual, o objeto imediato irá representar o objeto dinâmico. Uma pequena mudança no parâmetro Fs (freqüência de ressonância), de um alto-falante qualquer, adicionando algumas gramas de peso, quer dizer, mudando o valor do parâmetro Mms fornecida pelo seu fabricante, modificam todo o comportamento do alto-falante, o que se pode detectar na alteração de vários outros parâmetros e por fim, na curva de resposta em freqüências dele. Conforme o tipo de caixa acústica em que venha a ser instalado, de acordo com os objetivos de projeto, tais mudanças podem se constituir num razoável desastre ou, numa boa melhoria. O que importa é que isso vem comprovar que as características de um alto-falante, vistas como parâmetros T&S, impõem ao objeto imediato, condições e limites bem definidos, segundos os quais o objeto dinâmico deverá ser representado. Desse modo não é possível existir a caixa acústica perfeita, visto que não existem na natureza matérias-primas inertes para a fabricação de alto-falantes e, para ouvir o evento sonoro, estaremos sempre dependentes de como uma caixa representa o objeto dinâmico, no imediato.

Ao finalizar minha análise desta semiose correspondente à terceira transdução, não posso deixar de registrar aqui outra questão importante e há anos conhecida, que vem comprovar eletricamente, esta apreensão parcial do objeto dinâmico, no imediato. É de amplo conhecimento daqueles que estudam e pesquisam áudio, que os melhores alto-falantes do mundo, no que diz respeito à eficiência deles, ou seja, sua capacidade maior ou menor, de transformar energia elétrica em som, possuem eficiência ao redor de 10%! Note... 90% da energia recebida não é transformada em som,  mas em calor, principalmente. E isto nos mais eficientes (e caros), e nos demais?!

Precisei me demorar um pouco mais na análise dos objetos dinâmico e imediato porque é exatamente no entendimento da noção de representação parcial, que está a chave para se entender porque não pode existir um conceito de alta-fidelidade. Passemos então à análise do interpretante para enfim concluir.

Segundo o diagrama da semiose perceptiva apresentado por Santaella (1998: 111) e que representamos na fig. 02, o percipuum apreende o percepto, como 2.1.1. qualidade de sentimento; como 2.1.2. relação física; e como 2.1.3. generalização. Na audição de um evento sonoro desconhecido (mesmo que de um intérprete já familiar) predomina a qualidade de sentimento e portanto a primeiridade, se alternando freqüentemente com a relação física, secundidade, já que o evento é um existente. Dependendo do conteúdo de subgraves na gravação, e dependendo se o sistema de som, no qual está ocorrendo a reprodução, o reproduz adequadamente, a ocorrência destes dá origem a signos do tipo índice, no caso, índices da materialidade da música, presença material ainda que não visível, uma vez que faz vibrar os objetos à sua volta e, o nos faz senti-la com o tato da pele. Mas não é só isso. Os sons subgraves estão no imaginário coletivo muito associados a eventos catastróficos como explosões, desastres, terremotos, em suma eventos que ameaçam a vida, que por conseguinte nos evocam medo ou apreensão. Quando fazem parte da sonoplastia de um filme, sabemos que se trata de ficção e portanto, o efeito mais imediato é o de trazer realismo às cenas, fazendo-nos sentir com o corpo, a materialidade do mundo fictício apresentado na tela.

Portanto, se a percepção dos subgraves permanecesse no nível da 2.1.1.qualidade de sentimento , manifestada na 2.1.2 relação física, tais sentimentos teriam componentes de medo e apreensão, as reações mais imediatas, nos levando a elaborar significações em dissonância com a significação pretendida da música. Para que não tenhamos uma percepção equivocada, passamos deste segundo nível para o terceiro, 2.1.3. generalização, e deste para o interpretante. Para elaborarmos as nossas sentenças lógicas, “acessamos” outros signos interpretantes, para então retornarmos à 2.1.2. relação física, e lá permanecemos na maior parte das vezes – com relação aos subgraves – já sabendo que tais componentes subgraves na música não nos oferecem riscos. Como a toda a semiose é um continuum esse retorno, de acordo com a lógica das categorias peirceanas, é na verdade um avanço para uma outra semiose e não um retorno dentro da mesma. Ou seja, a 2.1.2. relação física (secundidade), incorporando a 2.1.1. qualidade de sentimento, dá origem a sentenças lógicas (interpretante) em desacordo com o evento que estamos experienciando; tais sentenças se constituem no objeto dinâmico da semiose seguinte, a ser representado no objeto imediato ou percipuum, e aí sim, permanecer – na maioria das vezes – na 2.1.2. relação física, gerando sentenças lógicas em nível de secundidade predominante. Se dispusermos de conhecimentos de áudio e acústica, que nos permitam chegar ao nível da generalização, identificando o tipo de subgraves, o momento de sua ocorrência, a sua origem como harmônicos de notas ou acordes emitidos por determinados instrumentos, neste caso predominará a 2.1.3. generalização e sentenças lógicas e interpretantes em nível de terceiridade. É claro que em se tratando de eventos sonoros, que têm sua ocorrência no tempo, a semiose perceptiva é dinâmica e seqüencial e além disso, composta de várias outras semioses que ocorrem simultaneamente, de modo muito análogo, ao que ocorre com a música gravada que, no seu processo gerativo, que devido aos recursos da gravação multipistas, põe em andamento uma série de eventos sonoros simultâneos e harmonicamente sicronizados.

Santaella está certa de que há também três níveis do interpretante. “...Estou certa que sim e que eles ficam muito perto de se identificar com os níveis do  percipuum, visto que essa é uma outra característica especial da semiose perceptiva” (1998: 109). Penso que é de extrema importância para a semiose perceptiva e, mais especificamente a auditiva, uma compreensão mais detalhada do interpretante, contudo, como este não é o foro apropriado, nem mesmo para propor, utilizo uma  forma provisória de divisão do interpretante, até mesmo nas denominações que escolhi. O interpretante então se subdivide em 3.1. sentenças lógicas relativas à qualidades de sentimento; 3.2. sentenças lógicas em nível de relação física; e 3.3. sentenças lógicas generalizantes.  É fácil constatar que estes três níveis apresentam muita similaridade com os três níveis do interpretante dinâmico, que são, respectivamente, emocional, energético e lógico.

Pois bem, sendo o signo de um evento sonoro que se nos apresenta aos sentidos, um ícone, seu objeto imediato  só pode ser uma qualidade possível de sentimento e, seu interpretante, só poderá ser uma 3.1. sentença lógica relativa à qualidades de sentimento. Se o signo for um índice e, na maioria das vezes o é, tanto pela a presença dos subgraves, como de outros caracteres no evento sonoro, seu objeto imediato tanto poderá ser uma 2.1.2. relação física como uma 2.1.1. uma qualidade de sentimento. Sendo o signo um índice e seu objeto imediato uma 2.1.2. relação física, seu interpretante poderá ser tanto uma 3.1. sentença lógica relativas à qualidades de sentimento como 3.2. sentenças lógicas em nível de relação física. Se o signo for um símbolo, e seu objeto uma 2.1.3. generalização, o interpretante poderá ser qualquer um dos três tipos de sentenças lógicas. Esta classificação que ora apresento não é excludente, ou seja, quando descrevo o signo como um índice, tendo como objeto imediato uma 2.1.2. relação física, não quer dizer, que não possa ser um índice tendo com um objeto imediato uma 2.1.1. qualidade de sentimento. Mas pela lógica das categorias peirceanas, certamente este signo do tipo índice, não poderá ter um objeto imediato de terceiridade como a 2.1.3. generalização. Pois a primeiridade pode prescindir da secundidade e da terceiridade, enquanto que a secundidade incorpora a primeiridade e pode prescindir da terceiridade e, esta por sua vez, incorpora primeiridade e secundidade. Daí se extrai a noção de signos genuínos (triádicos) e signos degenerados, de Peirce. Degenerados são aqueles signos que,  prescindem  da secundidade e/ou terceiridade. Não deixam de ser signos, embora não sejam genuínos, triádicos.

Exemplifiquemos um caso mais raro em que, o signo é do tipo simbólico, na audição de um evento sonoro. Neste caso é preciso entender melhor as nuances do objeto, no que, o trecho a seguir de Santaella é bem esclarecedor:

CITAÇÃO

Para esclarecer o papel que o objeto desempenha nesta relação, os intérpretes de Peirce, entre eles Johansen (1985), Pape (1989) e também Savan (1976), têm recorrido à noção de contexto, uso do signo e ligação do signo ao contexto. Peirce não chegou a formular essa ligação com precisão; deixou muitas sugestões de que o caminho para compreensão do objeto do signo estaria nessa ligação. Seus intérpretes têm, assim, levado à frente a tarefa de estruturar mais precisamente a função do objeto na sua relação com a noção de contexto. De um modo geral, pode-se afirmar que a informação anterior ao signo, adquirida colateralmente por meio de outros signos, constitui-se no contexto do signo.(Santaella: 2000, 107 e 108)

 

Então no caso da audição de um evento sonoro (familiar ou não) cujo contexto seja o trabalho de um técnico, digamos um feito particular, como o caso de Carlos Savalla, técnico de som da banda Paralamas do sucesso por vários anos, tanto em concertos como em gravações, que no álbum ao vivo da banda (Vamo batê lata), tentou reproduzir no CD, a mesma experiência que o público teve, nos concertos com os subgraves, é um signo do tipo simbólico, da capacidade deste profissional, do seu estilo, que com a sua experiência e conhecimento, conseguiu reproduzir muito bem a morfologia sonora da banda em concertos. Sendo o signo um símbolo, seu o objeto imediato poderá ser tanto 2.1.1. uma qualidade de sentimento, 2.1.2. uma relação física ou, uma 2.1.3. generalização e seu interpretante poderá ser do tipo 3.1. sentenças lógicas relativas à qualidades de sentimento; 3.2. sentenças lógicas em nível de relação física; e 3.3. sentenças lógicas generalizantes. Destas possibilidades se pode extrair 6 combinações de objeto imediato e interpretante, para o signo simbólico.

O que determinará a predominância de uma combinação, é o conhecimento daquele que, na audição do evento sonoro, se dispõe a analisar o objeto, nesse contexto de um feito particular. Só para não deixar de exemplificar as possibilidades mais gerais dessas combinações, se o ouvinte em questão for um técnico de gravação sem muitos conhecimentos teóricos, pode predominar o julgamento de percepção (signo simbólico), tendo como objeto imediato uma 2.1.2. relação física e um interpretante do tipo 3.1. sentenças lógicas relativas à qualidades de sentimento. Se por outro lado, além da experiência, possuir um bom conhecimento teórico, sobre áudio e sobre suas próprias atividades profissionais, certamente predominará o julgamento de percepção simbólico, tendo como objeto imediato uma 2.1.3. generalização, com um interpretante do tipo 3.3. sentenças lógicas generalizantes.

Não é difícil notar que ao citar exemplos em abertos da audição de eventos sonoros, fiz questão de diferenciá-los entre familiares e desconhecidos. A razão pela qual assim procedi, foi para facilitar a introdução das subdivisões do percipuum em ponecipuum e antecipuum. O primeiro corresponde à uma antecipação próxima e, o segundo à uma memória recente e, acompanham o percipuum, na sua ocorrência, ora predominando um, ora outro, e/ou ainda uma combinação de ambos (Santaella, 1998, 79).

Não é difícil perceber que, deliberadamente, concentrei a análise do interpretante na semiose perceptiva, visto que para o trabalho em questão, entender esta semiose, é mais premente para se compreender adequadamente os nossos argumentos em favor da impossibilidade da existência de uma alta-fidelidade e, de sequer, alguma fidelidade. Não pretendo dizer com isso que a semiose, digamos “normal” para diferenciá-la da perceptiva,  é menos importante.

Ainda assim, sinto-me impelido a pelo menos abordar superficialmente, a questão do interpretante, por que como pude presenciar nas discussões das aulas de semiótica peirceana (anotações de aula, 2000), pareceu-me haver uma compreensão, entre os músicos e/ou estudiosos da área, que na semiose “normal”, somente é possível se chegar ao interpretante lógico, se dispusermos de conhecimentos de composição e notação musical, caso contrário, não estaremos ouvindo música, mas apenas som. Como cheguei à uma conclusão diferente, creio ser importante registrá-la.

O interpretante, na semiose “normal” subdivide-se em três níveis: emocional, energético e lógico. Se recorrermos novamente à noção de contexto do signo, conforme o trecho transcrito de Santaella anteriormente, fica fácil entender como e por que cheguei à uma conclusão diferente. De acordo com o contexto do signo, veremos que a audição de música pode ocorrer sob vários enfoques, incluindo a audição como simplesmente qualidade sonora, como composição musical (segundo as discussões em aula citadas)e também como morfologia sonora, tecnicamente interpretável. Esta última é aplicável à técnicos de gravação, produtores musicais e audiófilos.

Desse modo, se na audição do evento sonoro, o contexto do signo for apenas o aspecto qualitativo, conhecendo ou não o intérprete e sua obra pregressa, predominará o interpretante emocional. Se o contexto do signo for uma tentativa de se entender uma obra ainda desconhecida, de um intérprete já familiar, considerando sua obra pregressa, predominará o interpretante energético. Este é o caso de amantes da música, apreciadores de um intérprete particular, mas sem conhecimentos de composição e notação musical e/ou também de técnicas de produção e gravação. Por fim, se o contexto do signo for a análise da “textura sonora” obtida e aspectos qualitativos, características de produção, do ponto de vista da composição musical predominará o interpretante lógico. Também predominará o interpretante lógico, se o contexto do signo for a análise da “textura sonora” obtida, aspectos qualitativos, características de produção, do ponto de vista da morfologia sonora, o que é aplicável a audiófilos e técnicos de gravação. Incluí características de produção nas duas modalidades, porque é uma condição básica para produtores musicais, conhecimentos tanto de música, como de técnicas de gravação. O que nos leva a concluir que estes profissionais, conforme o contexto do signo, podem chegar à interpretantes lógicos diferentes. É claro que não excluímos a possibilidade, de técnicos de gravação e/ou audiófilos, também possuírem amplos conhecimentos musicais e, poderem alcançar interpretantes lógicos diferentes.

 

6 – Conclusão

Bom, à essa altura, depois de tantos argumentos e comprovações apresentados, naturalmente brota em nossa mente o seguinte questionamento: se não existe alta-fidelidade existe o quê? Não existindo alta-fidelidade, o que se pode extrair de útil para os sistemas existentes ou, para projetos de novos sistemas? Será inútil o esforço de fabricantes de equipamentos de gravação para estabelecer novos padrões , como por exemplo gravação com amostragem (sample rate)de 96 kHz e resolução de 24 bits?

Em primeiro lugar, esclareço de início que não pretendo inventar um novo termo ou conceito. Deixo essa tarefa em aberto para contribuições futuras. Não acredito que seja o mais correto continuar usando esse termo já que evoca muitos significados impróprios. Contudo, reconheço que, na hipótese de meus argumentos serem aceitos e adotados amplamente, ainda levaríamos uns bons 10 anos, para ver esse conceito extinto da maioria das publicações do gênero. Então devemos nos contentar com uma coexistência pacífica ainda prolongada. Certamente não é possível existir um conceito de alta fidelidade na reprodução de eventos sonoros gravados, mas é possível se falar numa reprodução alta resolução, média resolução, baixa resolução, sem atribuir juízos de valor. A questão mais importante que se deve ter em mente, não é esta ou aquela definição de resolução, mas o fato de que, na audição de um evento sonoro qualquer, a mediação deste, pela cadeia de transduções e pela percepção humana, é inexorável e portanto, o evento percebido é um outro diferente daquele que ocorre no mundo físico. É uma representação do evento sonoro original e não ele mesmo.

Contudo para se introduzir esta noção de resolução de reprodução, sem pretender que sejam estabelecidos vínculos com juízos de valor, de imediato devo registrar que ainda é preciso encontrar palavras mais adequadas do que baixa, média e alta, pois justamente aí estaria um fonte de novos problemas de interpretação. Mas isto é tarefa para o futuro. Fiquemos por ora com a passagem de Santaella, onde isso fica muito claro:

CITAÇÃO

Há um admirável texto de Peirce sobre a ética da terminologia, no Qual ele diz que termos novos têm de ser inventados para designar conceitos novos, e isso para que os novos conteúdos não se misturem na poeira que recobre velhos conceitos. De resto, ele diz ainda que o uso de termos rigorosos é também uma boa maneira de a filosofia se livrar de leitores preguiçosos. ...(Santaella: 1998, 78)

 

Para Peirce todo o pensamento humano ocorre sob a forma de signos. Representação é a palavra apropriada para se entender o conceito de signo. Todo pensamento é uma representação de algo que acontece, aconteceu ou, que provavelmente acontecerá, seja no mundo físico ou na nossa mente. Tal representação é um signo. Um signo é interpretado num outro signo num continuum. “Qualquer coisa que substitui uma outra para algum intérprete é uma representação ou signo. Por exemplo: ‘uma palavra representa algo para o conceito na mente do ouvinte’, um retrato representa uma dada pessoa  para a concepção do seu reconhecimento por alguém, um catavento representa a direção do vento para a concepção daquele que assim o entende, ‘um advogado representa o seu cliente para o juiz ou júri que ele influencia’ ” (CP 1.553 apud Santaella, 2001b: 31). Sendo o pensamento uma forma de representação e portanto signo, a semiose ou ação do signo,  especialmente a semiose perceptiva, nos conduzirá a julgamentos de percepção, baseados na informação capturada no objeto imediato, ou seja, no modo como o objeto dinâmico foi representado no objeto imediato. Se esta apreensão, do objeto dinâmico no objeto imediato, sempre é parcial, não há como se falar num conceito de alta-fidelidade, mesmo se as três primeiras transduções, que abordei em detalhes, tivessem alcançado um limite tecnológico último, como o grau zero de temperatura à que Peirce se referiu.

Entretanto reconheço que, no estágio tecnológico atual, é possível registrar casos específicos de reprodução de eventos sonoros, que na maioria dos sistemas, em qualquer configuração, já são reproduzidos com tamanha perfeição, em filmes, programas de TV, rádio, música gravada, que freqüentemente nos induzem a enganos, ao pensarmos que estão ocorrendo ao nosso redor, quando na verdade estão presentes numa reprodução qualquer. Tratam-se de tons puros gerados por telefones, pagers, relógios de pulso, campainhas residenciais, etc. Tomando-se como base os padrões de gravação atualmente utilizados e comparando-os com o conteúdo e complexidade (que é mínima) desses tons, podemos concluir que ainda há um bom trecho a percorrer na evolução tecnológica, para que uma reprodução, de um fenômeno sonoro musical gravado (que é centenas de vezes mais complexo), se aproxime de equivalente perfeição.

Certamente a evolução dos sistemas de captação, gravação e de reprodução sonora, se dará no sentido de nos fazer experienciar o fenômeno sonoro ao nosso redor. Essa tendência começou com os sistemas quadrafônicos (4 canais) no fim dos anos 70, mas não progrediu, (para uso doméstico) provavelmente devido à limitação tecnológica dos suportes e, do alto custo dos equipamentos. Contudo, no cinema essa tendência prosperou, evoluindo do som mono para simples estéreo; deste para estéreo processado Dolby A type NR, no início dos anos setenta; deste para Dolby Stereo em 1975; deste para Dolby SR a partir de 1986; deste para Dolby Digital a partir de 1992; e finalmente, alguns anos depois, para Dolby Digital Surround EX (Dolby Laboratories, site, 2002) [v.a. 18]. Hoje os sistemas Dolby não são mais os únicos, existem modelos de outros fabricantes. O som do tipo envolvente ou surround portanto, hoje é uma realidade estabelecida. As cópias de filmes, além da trilha ótica, impressas numa das bordas (estéreo e codificadas), trazem na sua outra borda também, o som codificado os sistemas Dolby Digital, DTS (Digital theater sound)e SDDS (Sony dinamic digital sound), tudo para trazer maior realismo aos filmes, usando a técnica de som envolvente ou surround.

Com o advento do videocassete doméstico e do videodisco, a Dolby Laboratories criou uma versão do sistema de decodificação, usado nos cinemas, para uso doméstico, o Dolby Surround Pro-logic  que implica da reprodução do som através de 4 canais de áudio. Agora com o DVD (Digital video disc) é possível dispor, no âmbito doméstico, do um (Dolby Laboratories, 2002, site). O áudio gravado nos DVDs, embora sofra compressão (MPEG2), possui resolução de 24 bits, em oposição aos 16 bits do CD de áudio. Já se pensa num padrão de reprodução de áudio doméstica, utilizando o mesmo suporte e equipamentos de DVD, trata-se do SACD ou Super Audio Compact Disc, com resolução de 24 bits e amostragem de 96 kHz, ao contrário dos 44.1 kHz do CD de áudio e, já existe um bom número de obras gravadas ou reprocessadas para este formato, conforme se pode verificar no site da Tower Records (SACD, 2001).

Todos esses saltos tecnológicos vêm confirmar que a tendência, na reprodução de áudio, é de fato a de o evento sonoro nos envolver. Mas isso não é tudo. Esse padrão de distribuição multicanal, ainda não é suficiente para nos fazer experienciar a localização espacial, como numa sala de concertos, de cada instrumento. Há 17 anos atrás, Cláudio Cesar Dias Baptista [v.a. 15], ou CCDB, após longa experiência com amontagem e operação do sistema de som de Os Mutantes, escreveu uma série de artigos sobre áudio, na revista Nova Eletrônica entre 1977 e 1984. Durante uma longa conversa, onde debatíamos um desses artigos - em seu laboratório no RJ, considerando a incapacidade do sistema estereofônico de reconstruir um campo sonoro, ele argumentou que se houvesse a possibilidade de uma reprodução perfeita, esta deveria reproduzir o campo sonoro de modo que pudéssemos localizar espacialmente os instrumentos. Ele denominou essa possibilidade teórica, como som holográfico (Baptista, 1987, p. 94). De algum modo (ainda não inventado) um dispositivo, recriaria as vibrações de moléculas de ar, de forma localizada, em um espaço tridimensional.

De todo modo, isso ainda permanece como uma possibilidade futura, contudo há que se registrar essa inclinação para se buscar um forma de reprodução envolvente, recriando o campo sonoro,  deixou de ser uma idéia inalcançável, tal como pareceu-me na época, para se constituir numa possibilidade concreta. Dr. Karlheinz Brandenburg, professor e pesquisador da Universidade de Ilmenau, Alemanha, muito conhecido por ter sido o criador do algoritmo de compressão MPEG-1, nível 3, o popular MP3, trabalha atualmente num projeto de criação de campos virtuais sonoros. O projeto é coordenado pelo Instituto Fraunhofer (Alemanha) e está sendo desenvolvido em parceria com instituições de vários países da Europa. Segundo Dra. Sandra Brix, em entrevista a Sólon do Valle, há em Ilmenau “uma sala de estar para demonstração, com 48 alto-falantes formando um ‘u’. A necessidade disso vem do conceito Wave Field Sinthesis (Síntese de Campo de Ondas). É realmente necessário um array de alto-falantes, para reproduzir o que foi gravado.”(Valle, 2001, 66-69).

Por fim, considerando todos os progressos tecnológicos já alcançados, bem como aqueles por vir, se houver condição de se conseguir uma reprodução sonora, de resolução tão alta, que permita uma representação perfeita do evento sonoro gravado, que nos faça experienciar o fenômeno como ocorrido aqui e agora, diante de nós, teremos alcançado aquele ponto último, como o grau zero de temperatura a que Peirce se referiu. Mesmo assim, a reprodução não deixará de ser mediada pelas três primeiras transduções , por mais que se aperfeiçoem e enfim pela percepção humana.

Para que esta forma de reprodução tão exata, venha existir um dia, – mesmo mediada – penso que será preciso um esforço conjunto e persistente, de audiófilos, músicos, técnicos de gravação, consultores de áudio, pesquisadores da área e fabricantes, no sentido de realmente demolir certos mitos que foram criados ao longo do tempo, enfrentar corajosamente concepções ultrapassadas e em desacordo com a realidade tecnológica e, lutar contra o uso indiscriminado de denominações comerciais equivocadas, e até mesmo fantasiosas.

Se nos dispusermos a estes esforços, de forma a contribuir para que, esta reprodução exata, venha a existir um dia, ainda assim, penso que devemos dedicar máxima atenção possível aos elos mais frágeis da cadeia de transduções, na elaboração ou execução, de qualquer projeto de sistema de som, para esta finalidade. Para tanto, os sistemas devem obrigatoriamente, incorporar progressos do conhecimento humano já solidamente estabelecidos. Exemplifiquemos algumas questões encarnadas em exemplos:

 Uma questão das mais importantes é eliminar das caixas acústicas, os divisores passivos que são fonte de distorções e perda de potência, e utilizar largamente a multiamplificação. Com a tecnologia já disponível atualmente, é possível se obter excelentes resultados com amplificadores de médio custo, quando em multiamplificação.

Transistores ou válvulas? Em muitos equipamentos eletrônicos, a válvula não passa de vaga lembrança, mas em vários equipamentos de áudio – especialmente amplificadores – ainda  existem e, para os quais vários modelos delas, continuam a ser fabricados. Esta é uma questão muito controversa. Sólon doValle, num artigo que tem o propósito de apresentar fatos e mitos a respeito dessa controvérsia, após apresentar inúmeras características sobre ambos, afirma que:

CITAÇÃO

O transistor tem inúmeras vantagens sobre a válvula, : consumo de energia 60% mais baixo, menos geração de calor, ruído mais fácil de reduzir, menor tamanho, menor peso, menor desgaste com o tempo, menor distorção dentro da potência nominal, pode ser usado em circuitos integrados, não usa necessariamente a alta tensão, etc.. As vantagens da válvula são a maior musicalidade e ‘transparência’ , a capacidade de dar maior potência que a nominal a uma distorção ainda aceitável e, no caso dos amplificadores de guitarra, uma distorção do tipo ‘overdrive’ natural e extremamente ‘macia’. (Valle, 1994, 15).

 

Ele faz ainda outras considerações sobre a válvula e conclui que a sonoridade de amplificadores valvulados e transistorizados é definitivamente diferente. Não pretendo de modo algum, alimentar ou prosseguir aqui, esta controvérsia. Penso que, se é necessário fazer uma opção, que seja no sentido de beneficiar um número maior de pessoas, com custos mais acessíveis. O amplificador transistorizado quando utilizado em multi-amplificação pode oferecer musicalidade e transparência, equivalentes aos valvulados e é especialmente educativo lembrar aqui de algumas opiniões de Rupert Neve, autor de inúmeros projetos inovadores de equipamentos de áudio, entre eles os lendários consoles Neve para estúdios e amplificadores valvulados, numa entrevista ao mesmo Sólon do Valle.

CITAÇÃO

M&T – O que o Sr. pensa do lançamento de produtos usando válvulas?

RN – Acho que as pessoas que usavam válvulas quando não havia outra alternativa, têm muito a ensinar àqueles que usam válvulas hoje.  Outro dia,  publiquei um artigo sobre este assunto.  As válvulas eram pouco confiáveis, caras, ruidosas, ineficientes, quentes e grandes, sujeitas a microfonia, produziam hum e nunca havia duas iguais. Depois de tanto tempo, as pessoas começaram a redescobrir as válvulas, e achá-las maravilhosas – é porque não tiveram a experiência de usá-las na vida real. [...] Enfim, é interessante ver entusiastas de hi-fi usando amplificadores a válvula hoje. Eu uso mesmo um amplificador integrado de 300 dólares, e descobri que é um projeto classe A [refere-se a classes de amplificadores, A, B, AB, D, G e não a um juízo de valor], com baixo ruído e nenhuma distorção de crossover. [...]me satisfaz tanto quanto outros que custam não 300, mas 3.000 dólares. [...] enquanto pessoas pagam milhares de dólares por amplificadores de potência ‘esotéricos’ [...] Válvula hoje é moda, é prestígio, é status. É como o sujeito que compra um carro esporte...  (Neve, 1995, 15).

CITAÇÃO

Considerando as palavras de Rupert Neve, fruto de longa experiência com válvulas e transistores, e considerando o propósito de tornar essa “reprodução exata” num futuro, acessível ao maior número de pessoas, acredito que seja mais sensato nos inclinarmos para a multiamplificação, com uso de crossovers e amplificadores transistorizados. É em questões como essa que o conhecimento da teoria da percepção peirceana, ilumina sobremaneira o problema e nos ajuda a decidir mais acertadamente: a mediação é inexorável, o objeto dinâmico nunca será inteiramente captado no objeto imediato. Porquê insistir em discussões intermináveis, se dispomos de alternativas mais satisfatórias?

Devemos também utilizar nas caixas acústicas, elementos transdutores com propriedades físicas mais próximas dos instrumentos que reproduzem. É sabido que a maioria dos instrumentos musicais, cujas freqüências mais altas e mais baixas, estão compreendidas entre 1.600 e 14.000 hz, gera seu som a partir da vibração de peças metálicas (cordas, chaves, corpo), pois bem, se não é possível existir um conjuntos de transdutores (drivers e tweeters) diferentes entre si, com membranas de metais diferentes, para reproduzir cada um desses instrumentos – o que seria obviamente  inviável – que  pelo menos, estes transdutores utilizados (para esta região do espectro de freqüências), utilizem membranas metálicas, que reproduzem com mais exatidão a maioria dos instrumentos, que são e/ou soam metálicos. Então devemos optar pelos diafragmas metálicos, até que surjam drivers com membranas metálicas de outra composição e, superior .

Se a voz humana é indiscutivelmente melhor reproduzida por drivers de compressão acoplados a cornetas, que sejam preferidos estes em detrimento dos midrangers de cone e, é claro com membranas metálicas, mesmo não sendo obviamente, as cordas vocais, feitas de metal, prevalece na escolha a maioria dos instrumentos que dá textura à música, sem prejudicar reprodução da voz.

Ainda na questão dos drivers e, por conseguinte, na região dos médios, médios-agudos, e agudos, se a melhor e mais aproximada forma de reprodução, ocorre com drivers de  compressão acoplados à cornetas, sendo tanto melhor o resultado quando maior for a rigidez delas, porque escolher cornetas de materiais flexíveis e acusticamente absorventes (como plásticos, resinas com pintura, etc.)? Porque não insistir junto aos fabricantes para utilizarem matérias-primas como cerâmica, resina de poliéster com mármore em pó, e o que é melhor, Vidro! Porque não?

Se já há tecnologia fartamente disponível em todas as partes do planeta, para embutir crossovers eletrônicos nos amplificadores (uso redidencial) , por que não insistir junto aos fabricantes, que o façam? Um bom amplificador de dois canais, quando utilizado em bi-amplificação aumenta incrivelmente o rendimento, principalmente nos graves, a faixa de freqüências que mais de deteriora, quando filtrada por circuitos passivos. A bi-amplificação ainda não é o ideal – três ou quatro vias sim, a melhor opção – mas  já será um passo significativo em direção à uma reprodução mais exata do evento sonoro, preservando a simplicidade de instalação, operação e  custos mais acessíveis, sem modificar significativamente, os procedimentos industriais, através dos quais,  os aparelhos são montados hoje.

Enfim o que deve prevalecer antes de tudo é o bom senso. O objetivo final de todo esse complexo sistema de captação, gravação e reprodução é uma tentativa de recriar o evento sonoro musical. A música é uma das grandes paixões humanas e sua reprodução, para o nosso deleite infinito, deve retirar do caminho tantos obstáculos quanto forem possíveis, já que a mediação é inexorável. Devem prevalecer os ganhos no “atacado” que realmente trazem diferenças perceptíveis. Não estou dizendo que não sejam necessários, mas o foco da nossa atenção deve estar voltado para ganhos significativos audíveis e mensuráveis com instrumentos de medição. Muitos dos sistemas, que se auto denominam como de alta fidelidade, existentes atualmente, ignoram essas questões que levantei, de modo que, já há alguns anos, poderiam possuir “fidelidade” maior do que a que dispõem atualmente, se as tivessem considerado adequadamente.

Nunca haverá a reprodução perfeita. Sempre o objeto dinâmico estará parcialmente representado dentro do signo, apesar de que, as novas técnicas de gravação, permitirão que o objeto imediato, capture o objeto dinâmico – nas duas primeiras transduções – com uma aproximação cada vez maior. O fato é que ainda há uma longa distância a percorrer, até que o conhecimento humano, permita que nos  aproximemos do grau zero de temperatura à que Peirce se referiu.

Muito do que se pode fazer já está ao nosso alcance há vários anos. O que temos a fazer é utilizar adequadamente, prevalecendo o bom senso, sem esquecer que a mediação é inevitável e, sem nunca perder de vista que a música, enquanto nossa grande paixão, é o mais importante.

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