A criação artística face a experiência estética:
três categorias em questão.

Cândida Almeida

 

Resumo: Este artigo refere-se às discussões relativas à construção das obras de arte como complexos sígnicos. Tais complexos são frutos de processos de pensamento e construção artística que se originam a partir da busca de materialização do ideal estético emanado da obra arte. Esse estudo se apóia na semiótica peirceana para enfrentar essas discussões e propor três categorias que possam analisar as obras de arte, tanto em suas dimensões sígnicas como a partir de relações experimentais estética. Antes de apresentar tais categorias expomos de forma sintética, categorias de dois autores (Paulo Laurentiz (1991) e Julio Plaza (1998)) que analisam os processos de invenção artística, fundamentados pela semiótica peirceana que por sua vez estão engendradas com as categorias fenomenológicas de Charles S. Peirce.

1 - O processo de criação artística

Esse trabalho tem como propósito apresentar três categorias para análises das obras de arte. É importante evidenciar que as obras são tratadas, aqui, como complexos sígnicos, representantes de um ideal estético subjacente a toda e qualquer criação artística. Para esse fim, a semiótica peirceana – especialmente a fenomenologia – aparece como fundamento teórico para a proposição de tais categorias. Em linhas gerais essas categorias se configuram como suporte conceitual para o entendimento do processo de composição da obra de arte que, por sua vez, está submetida às relações de experiência estética nos instantes em que venha a ser fruída, seja pelo próprio artista, pelo público ou pela crítica.

Apesar de trabalhar questões concernentes a Teoria da Arte, tais questões são relevantes para o campo da Comunicação Social por dois motivos aparentes: em primeiro lugar a obra se presta como um meio de transmissão da informação estética (mediadora de signos estéticos) que em muitos casos erige-se em suportes próprios dos meios de comunicação. Esse é o caso, por exemplo, das músicas, vídeo arts, web arts, etc. Enquanto produção permeada por signos estéticos, pode-se afirmar, então, que as obras de arte levam a cabo a exploração das potencialidades estéticas desses meios.

Em segundo lugar, a análise das obras de arte como composições sígnicas (desenvolvidas a partir de um ideal estético ulterior) favorece um maior distanciamento do sujeito que a analisa (que também é um fruidor, que se envolve na experiência estética), o que acaba por distanciá-lo dos juízos de gosto e valor. Através da aplicação de categorias – não como amarras conceituais, mas como suporte para dirigir os questionamentos críticos – nas análises artísticas, esses dois campos (arte e comunicação) tendem a estabelecer uma aproximação livre (ou em parte livre) do julgamento valorativo da composição. Nesse sentido pode-se concluir que o tratamento da arte pela comunicação tende a ser menos parcial, uma vez que as análises partem das relações entre a obra, suporte e experiência estética revelada.

Fenomenologia peirceana

Antes de apresentar as categorias que iluminam esse trabalho, faz-se necessário dar uma exposição da relação de engendramento das categorias fenomenológicas de Peirce, uma vez que toda fundamentação teórica desse artigo está apoiada nesses conceitos. A fenomenologia é toda a base de fundamentação para a ciência semiótica peirceana. É a partir das categorias fenomenológicas que o filósofo aponta a forma como o signo (elemento de representação dos fenômenos que a semiótica estuda) irá ser analisado e estruturado. As partes integrantes do signo, assim como a relação entre os diversos signos numa composição, está fundada nessas categorias, a fenomenologia. Apresentamos de forma diagramática essas três categorias.


 


(Almeida in www.webcritica.hpg.com.br, consultado em 10/02/02)

 

Peirce explica que todo fenômeno tem sua ocorrência erigida de uma relação entre três partes integrantes, três categorias fenomenológicas que trabalham concomitante e ininterruptamente. São elas: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade. A primeiridade é a categoria que rege as qualidades de sensação, a presentidade, a espontaneidade, a potencialidade do fenômeno que se analisa. A secundidade se identifica com as idéias de ação-reação, de conflito, de materialização, de resistência, de atualidade, etc. Já a categoria da terceiridade está aliada às características de generalidade, continuidade, representação, propósito, mediação, infinidade e genuinidade do ­signo.

As três categorias fenomenológicas são onipresentes em qualquer relação e aparecem de forma engendrada, ou seja são concomitantes, se relacionam conjuntamente. No entanto, o signo só é materializável enquanto elemento predominante em sua secundidade e só se torna genuíno em sua terceiridade, ou seja, só ele é representado em terceiridade. Apesar disto, os signos podem se apresentar em predominância de alguma das três categorias, o que acaba conferindo ao signo uma identidade com atributos próximos aqueles governados pela categoria em destaque.

A proposta de Laurentiz

Apesar de ser fundamental o envolvimento emocional tanto do espectador quanto do artista com a obra, outras formas de vislumbrar a arte permeiam essa relação entre homem e obra. Paulo Laurentiz aponta que para entender e realizar uma produção artística é preciso estar atento às três etapas do sistema integrado do pensamento da arte, que estrutura a holarquia do pensamento artístico, considerando aquilo que Koestler descreve como holarquia: “...organismos independentes constituintes de um organismo maior que rege as suas ações, integrando-as” (Koestler in Laurentiz, 1991, 17). Pode-se entender holarquia como o processo de engendramento desses organismos, ou seja, aquilo que os une.

Laurentiz trabalha a dimensão estética a partir dessas etapas, buscando a sua conceituação teórica nos estudos peirceanos de três categorias fenomenológicas. O autor brasileiro aponta que o artista assim que finaliza sua obra, passa automaticamente a ter um outro tipo de olhar para sua produção, o olhar crítico, interpretativo.

Para evidenciar a holarquia do pensamento artístico, Laurentiz expõe a relação entre autor e obra, uma sugestão de três momentos de um sistema dimensionado por um elo holárquico, no qual as três etapas dialogam concomitantemente, apesar de cada uma possuir identidade e funções próprias. São elas: – o insight, a materialização e a crítica (interpretação).

“Pela própria definição de holarquia, estes três momentos são independentes. Entretanto, ao mesmo tempo, eles possuem um elo hierárquico que possibilita a interpretação do pensamento como um todo integrado, permitindo entender o pensamento da arte como fruto de operações complexas e auto-estruturantes.” (Laurentiz, 1991, p. 125)

Num primeiro momento desse processo artístico, Laurentiz aponta a presença do insight. O insight se configura como a idéia momentânea que irá desencadear todo o processo produtivo, ou seja, uma orientação de primeiridade. É aquele lance inicial, a sugestão, o despertar artístico a caminho da sua formatação no suporte sugerido. Apesar da visível influência peirceana em seus estudos, Laurentiz busca em vários autores fundamento teórico para a incursão do insight na produção artística.

Explorando a teoria oriental, Carl Jung revela integrações entre a meditação e o afloramento do insight. Jung lembra o processo da meditação, no qual “...fatos e conceitos são relaxados e embora existindo na mente, são deixados ocultos e passam a ser rearticulados sem constatações, aflorando num satori ou insight, através de um processo por sincronicidade” (grifo do autor) (Jung in Laurentiz, 1991, p. 34). Através do conceito de sincronicidade formulado Jung fundamenta essa intima ligação conceitual. Segundo Jung, o encontro de dois eventos simultâneos, sem que exista uma relação causal entre as partes, mas que as mesmas dividam similar conteúdo significativo, é o que o autor aponta como sincronicidade. Salienta que neste momento, verifica-se uma linguagem neutra, uma neutralidade entre a mente e os fatos.

(...) um conteúdo inesperado, que está ligado direta ou indiretamente a um acontecimento objetivo exterior, coincide com o estado psíquico ordinário: é isto que chamo de sincronicidade, e sou da opinião que se trata exatamente da mesma categoria de eventos, não importando que sua objetividade apareça separada da minha consciência no espaço e no tempo”. (Jung in Laurentiz, 1991, p. 32)

Aproximando o campo da arte ao campo da ciência, Laurentiz relembra as considerações de Arthur Koestler. Ele trabalha a existência de hólons mentais, partículas reservadas na mente com amplo poder associativo, fundamental na proposição de novas idéias, seja na arte ou na ciência. Para Koestler, a arte possui, tal como a ciência, um impulso explorador, passível de despertar o homem para novas descobertas, “... rearticulando mundo e mente numa nova distribuição holárquica universal” (Laurentiz, 1991, p. 37). Confirmando a idéia holárquica, Koestler afirma que “... as descobertas da ciência (logo, da arte) não criam algo do nada; elas combinam, relacionam idéias, fatos, contextos associativos – hólons mentais – que já existiam anteriormente, mas estavam separados”. (Koestler in Laurentiz, 1991, 37)

Mas, a grande influência das proposições de Laurentiz acerca do insight erige das idéias de Charles Sanders Peirce. Para Peirce, o pensamento pode ser desenvolvido a partir de três níveis lógicos: abdução, indução e dedução. Esses três níveis estão na relação das três categorias fenomenológica (primeiridade, secundidade e terceiridade, respectivamente). O autor afirma que só a abdução é capaz de gerar novas proposições e hipóteses. A abdução é um nível primeiro do pensamento, no qual as idéias originais do artista e/ou cientista irão dar vazão na mente, a partir de associações entre signos presentes no repertório intelectual da pessoa. “... os fatos da premissa constituem um ícone” (Peirce in Laurentiz, 1991, p.46). É a primeira sugestão hipotética que será encaminhada para uma discussão e/ou produção que, por sua vez, podem ser refutadas pela conclusão, essa, por sua vez, em processo sempre inacabado, pois qualquer sugestão está sujeita a diversas inferências externas ou internas.

O processo abdutivo é, pois, o ambiente onde o insight é revelado. “Hipótese ocorre quando nos deparamos com uma circunstância curiosa, capaz de ser explicada pela suposição de que se trata de caso particular de certa regra geral, adotando-se, em função disto, a suposição.” (Peirce in Laurentiz, 1991, p. 45). Dessa forma estabelece Laurentiz:

Na arte, com certeza, a conduta do pensamento se organiza dentro do esquema abdutivo da formulação de hipóteses, havendo sequer necessidade de negação das conclusões, pois as regras encontradas na arte são de total fragilidade. A arte constitui-se num universo de premissas maleáveis e de fácil reorganização intelectual, gerando novas idéias, impunes à experimentação, pois não há o que se medir e classificar, já que ela é descomprometida basicamente com a formulação de regras e raciocínios com princípios ou padrões preestabelecidos.” (Laurentiz, 1991, p. 49)

Além do insight, Laurentiz aponta outras duas etapas – que estão engendradas segundo a relação fenomenológica de Peirce – do olhar para a produção artística. A segunda delas é a materialização da obra. Ora, se existiu um insight, uma nova forma de se apresentar a arte, tal forma só será possível se essa nova proposição se viabilizar num suporte. Ou seja, a materialização é a fase teste do insight, é a formalização da proposição, o teste da hipótese, é onde a arte deixa de ser um processo especulativo e passa a ser uma forma criativa. “Após inferências puramente hipotéticas que caracterizam essa fase do pensamento do artista, ele procura conduzi-lo para a materialização de uma obra. (Laurentiz, 1991, p. 60).

Nesse momento faz-se necessário a compreensão do conceito de abrandamento da tecnologia: a representação quanto mais possível entre a sugestão do insight e a materialização dessa obra em determinado suporte é o que Laurentiz aponta como a equivalência dos discursos – tanto aquele despertado pelo insight quanto das possibilidades de determinada técnica -, buscando uma similitude de qualidades de sentimento. “Desta maneira, não há interferência interna e uma linguagem sobre as qualidades da outra linguagem. Os discursos se equivalem, gerando sentimentos similares diante do fenômeno em si ou da manifestação cultural produzida.” (Laurentiz, 1991, 113)

Num terceiro momento, o autor evidencia o processo de interpretação da obra. Assim que ela é finalizada, o próprio artista lança-lhe um olhar interpretativo, de associações sígnicas, a partir do qual seu crivo entra em ação nesse trabalho, apregoando à sua produção a primeira crítica. “Passa a uma outra fase do pensamento artístico, preocupado fundamentalmente em transferir para a matéria uma intenção que provocará, num interpretante, um efeito similar ao promovido pelo insight.” (Laurentiz, 1991, p. 60) Ou seja, é nesse momento de diálogo entre objeto e homem que o artista insere a arte em seu tempo e a partir de então, a obra concretiza seu estado da arte. “Nesta nova situação, o artista promove, na falta de um termo melhor, uma avaliação do resultado conseguido em relação ao “insight” promotor. (Laurentiz, 1991, p.125)

Resumindo, a realização de uma obra de arte só é possível a partir do momento em que a sua idéia inicial partiu de associações dos fatos do mundo. Tais associações aparecem na mente através dos insights, que em um segundo momento se realiza através da sua operacionalização. Essa realização será, em um terceiro momento, avaliada pelo artista, confirmando se existe equivalência entre o insight despertado e a obra materializada.

 Os três modelos poéticos

Julio Plaza e Mônica Tavares (1998), no livro ”Processos criativos com os meios eletrônicos: poéticas digitais”, estabelecem três grupos de métodos de criação poética, definidos em consonância com as categorias fenomenológicas proposta por Peirce e pautadas pelo método heurístico de criação, ou seja, desenvolvidos a partir de “... percursos que a mente realiza para atingir a invenção” (Plaza & Tavares, 1998, p. 87). Esse três grupos de modelos poéticos são: o do possível, o do existente e o do simbólico.

Antes de explicá-los é preciso deixar claro o que entende-se por poética. A poética é o programa da arte, ela condensa o aparato regimental de enquadramento dos signos na composição artística, quando da sua busca ao ideal estético da obra. Nesse sentido, a poética está numa relação de codificação do trabalho artístico. Ainda que esse regime de códigos não esteja explícito em um manifesto, podendo sê-lo também, mas que possa garantir algumas propriedades de engendramento estético. Segundo Pareyson (1997),

A poética é programa de arte, declarado num manifesto, numa retórica ou mesmo implícito no próprio exercício da atividade artística; ela traduz em termos normativos e operativos um determinado gosto, que, por sua vez, é toda a espiritualidade de uma pessoa ou de uma época projetada no campo da arte” (Pareyson, 1997, p. 11)

O primeiro modelo poético, apresentado por Plaza (1998) é o do possível que define-se pelos quesitos de associação mental de qualidades, a partir das memórias anteriores à criação. Nesse tipo de poética estão inscritos todos os programas que emergem através das associações mentais das qualidades emanentes da construção poética e das imprevisibilidades criativas (insights e ruídos na criação), configurando-se assim, uma poética cujas “...estruturas e qualidades materiais de cada meio” estão “em sinergia com um projeto mental” (Plaza e Tavares, 1998,p.121)

Esse tipo de poética, no entanto, é uma referência para a configuração dos outros dois métodos (do existente e do simbólico). Isso ressalta a relação fenomenológica das categorias peirceana – a primeiridade oferece um campo de possibilidades para a configuração das outras duas categorias – com os métodos de construção poética propostos pelos autores. Sendo assim,

O criador parte de uma idéia, atingindo por meio de conexões mentais o ícone, o diagrama, o insight. Ao examinar a possibilidade de concretização do problema, forma-se na mente criativa o espelho da solução a ser efetivada, que deve, necessariamente, estar de acordo com a lógica do objeto que está a realizar.” (Plaza & Tavares, 1998, p. 90)

  As “conexões mentais” citadas são, pois, as possibilidades de criação que erigem das associações mentais das qualidades do objeto com outras participantes do repertório do autor, que por sua vez, tomam relevância no universo de produção com a evidência dos insights promotores. Estamos tratando da mesma natureza do insight discutido anteriormente, quando do mapeamento das idéias holárquicas de pensamento propostas pelo semioticista Paulo Laurentiz.

 Já “concretização do problema” é a relação de diálogo que o método do existente oferece para a formatação e materialização do objeto artístico, determinado “...pelo conflito e pela experiência vivenciados no contato, na ação/reação com a materialidade do meio produtivo”. (Plaza & Tavares, 1998, p. 103). Buscando na teoria de Laurentiz, percebe-se uma relação direta entre a materialização da obra em função das possibilidades do meio. Já a experiência estética está para a relação de contato e emergência do objeto artístico, enquanto ideal estético. Nesse contexto, situa-se o método do existente artístico. No entanto, “A intenção desse método não está na obra acabada, mas sim no ato de fazer.(Plaza & Tavares, 1998, p. 103)

 Mas tudo isso só é possível se dialogar logicamente com o terceiro método que vem a ser o simbólico, o método do pensamento. Neste caso, estamos tratando de uma lógica que “...é imposta logo que se tomam como ponto de partida estruturas ordenadas, admitidas como meios para a concretização de um determinado produto.” (Plaza & Tavares, 1998, p. 90). Esse método tem como propriedade lidar com a contiguidade (semiose, evolução, transformação) do objeto, ou seja, o impulso de uma continuação eternamente favorecida às modificações e crescimento do objeto. Nesse contexto é que o autor joga seu olhar crítico, como apresenta Laurentiz e donde surgem as possibilidades de codificações, uma vez que tratamos de objetos simbólicos.

A característica principal dos métodos a serem analisados é operar com símbolos ou signos de caráter convencional. Estes métodos se desenvolvem por meio da incorporação e consequente transformação de dados já existentes e repertoriados. Dão margem ao aparecimento de novas significações, estabelecidas com base em releituras ou recodificações, envolvendo, assim, a relação de diálogo entre vários códigos e linguagens.” (Plaza & Tavares, 1998, p. 112)

 Nesse sentido, pode-se entender que a poética é o pressuposto de codificação da obra de arte dentro de uma ou mais linguagens. A articulação dos códigos, através desses métodos de criação possibilita estabelecer uma relação simbólica da obra com a linguagem na qual se insere. Ou seja, toda e qualquer obra revela um tipo de poética que a faz se enquadrar em uma dada linguagem, seja ela híbrida ou não.

 2 - Categorias de análise

Discutido o método de criação holárquica de Laurentiz (1991) e os três métodos de criação poética (Plaza & Tavares, 1998), propomos nesse item três novas categorias de análise das obras de arte que, além de partir da criação artística, ainda integra o processo de fruição da obra, a sua relação experimental. Os métodos até agora discutidos dão conta apenas da relação do autor com a obra de arte (a criação), nas categorias aqui propostas, busca-se também a relação de co-criação artística, a experiência do sujeito com a obra e as possibilidades de se continuar a criação artística pelo sujeito experienciador.

Nessas novas categorias damos ênfase à composição sígnica da obra preste a ser fruída e não somente o percurso de criação da obra (como propõe Laurentiz) e enquadramento das obras em determinado modelo, como sugere Plaza (1998). Assim como os autores acima, essas categorias estão fundamentadas na semiótica peirceana. Dessa forma propomos:

1. seleção hipoicônica

2. singularidade

3. poética

 

 

onde:      a seleção hipoicônica se refere à primeiridade

                a singularidade se refere à secundidade

                a poética se refere à terceiridade

 Assim como as categorias fenomenológicas, essas categorias de análise estão engendradas, ou seja, trabalham em concomitância e relacionando rapidamente essas categorias àquelas de Laurentiz (1991) e Plaza (1998) pode-se dizer que a seleção hipoicônica se configura como a materialização do insight promotor da criação artística. Já a singularidade aparece relacionando-se com as características de materialização da obra de arte. No entanto, a singularidade é uma propriedade única de cada obra que só se realiza quando do seu contato experimental (fruição). A poética citada por Plaza (1998) aparece aqui não como tipos possíveis, mas como parte integrante de relação triádica que oferece subsídios para analisarmos os códigos de composição das obras de arte. Para clarear melhor essas relações apresentamos:

Seleção Hipoicônica

Enquanto construção artística, a obra se configura como uma produção que vislumbra alcançar um ideal estético (summun bonum), um ideal de apreciação de todo e qualquer elemento presente na obra que, por sua vez, esteja pontencialmente apto a despertar sentimentos nos sujeitos que mantenham alguma relação com a obra.

O ideal que Peirce tinha em mente é o fim último em direção ao qual o esforço humano deve se dirigir. Trata-se do ideal mais supremo para o qual nosso desejo, vontade e sentimento deveriam estar voltados. O ideal dos ideais, o summun bonum, que não precisa de nenhuma justificativa e explicação. A questão da estética, portanto, é determinar o que pode preencher esse requisito de ser admirável, desejável, em e por si mesmo, sem qualquer razão ulterior. (Santaella, 1994, p. 126)

Pode-se evidenciar que a composição artística só apresenta esse ideal estético parcialmente, através da materialização do ideal em ícones (tipos de signo em predominância das características da primeiridade, permeados pelas qualidades estéticas). No entanto os ícones são tipos sígnicos que não se materializam, mas aparecem representados por hipoícones (ícones degenerados). Então, qualquer materialização de um ideal estético está mediada pelos hipoícones.

O trabalho icônico (mediado pelos hipoícones) é o recurso que conforma a materialização dos pressupostos estéticos que o artista quer evidenciar em sua obra de arte. É através das contraposições sígnicas, hipoicônicas, que o ideal artístico da obra emana. Os hipoícones são elementos da obra de arte que melhor representam materialmente as qualidades de sensação que se apresentam no trabalho artístico, uma vez que são dotados de atributos intimamente ligados à experiência entre o sujeito e a obra experienciada. Então, esses tipos de ícones degenerados irão delegar à obra de arte seu grau estético, uma vez que a estética da obra está relacionada à primeiridade fenomenológica, assim como o ícone.

Os hipoícones se apresentam no momento em que a obra é experimentada esteticamente, o que nos possibilita entender que eles são os responsáveis pela representação estética da obra, aquilo que desperta qualidades. Nesse sentido, os hipoícones permitem entender e analisar as obras de arte do modo de sua experiência.

É a partir dos hipoícones que sugerimos a primeira das três categorias de análise que essa pesquisa apresenta. Tal categoria se dá em consonância com as características próprias da primeiridade peirceana, ou seja, que se pauta pela emanação das qualidades de sensações que uma obra de arte está apta a produzir. Dessa forma, a categoria em questão dispõe de um leque de elementos passíveis de materialização, que serão selecionados a fim de comporem os signos estéticos presentes em toda e qualquer obra de arte.

Esses signos estéticos são, por sua vez, ícones degenerados e se apresentam materializados como hipoícones. Tais elementos dependem, no entanto, de uma escolha minunciosa (tanto da materialização do ideal em signos estéticos – hipoícones –, quanto do nível de abertura fruitiva oferecida), que está condicionada às possibilidades repertoriais do autor, do experienciador e da expressão artística, à qual a obra de arte pretende se enquadrar. Este é um processo seletivo, que aqui categorizamos como seleção hipoicônica. A seleção hipoicônica é a primeira das três categorias de análise das obras que serão apresentadas. Essa categoria está fundamentada na relação entre o repertório que o autor dispõe para viabilizar a composição artística e o seu ideal estético. Essa relação se materializa através da seleção de alguns elementos com propriedades de manifestar qualidades de sensação (hipoícones) no momento da experiência estética.

Segundo Bense (1971), “Toda concepção e produção consciente de um estado estético ou de um objeto artístico (que é portador de um estado estético) parte de um repertório que possui, além da componente material, uma componente semantema.” (grifos do autor) (Bense, 1971, p. 66). Dessa forma, o repertório se divide em duas componentes distintas: o repertório material que é a própria escolha material dos elementos constituintes, escolha de cores, palavras, formas, sons para a composição. O repertório material, segundo Bense, está condicionado pela relação triádica de três elementos fundamentais para a sua configuração, que por sua vez, estão de acordo com as categorias fenomenológicas de Peirce. Sendo eles, os componentes de substância, forma e intensidade.

A ‘relação triádica de signo’, tal como Peirce a introduziu, corresponde, no caso, uma ‘relação triádica de elementos’, quando se considera que cada elemento, entendido como signo, ou usado como tal, possui componentes de substância, de forma e de intensidade. Neste sentido, falamos de ‘substância de signo’, ‘configuração de signo’ e ‘intensidade de signo’. (Bense, 1971, p. 66)

De acordo com Bense, a substância refere-se às qualidades imanentes icônicas de composição da obra, aquilo que substancialmente está apto a atribuir ao repertório a sua carga estética e que oferece uma abertura para que o ícone se degenere, apresentando-se como hipoícone, num outro instante. Já a forma é um segundo e de acordo com as características próprias do universo fenomenológico da secundidade é a presença configurada, formatada do ícone, ou seja, a emanação do hipoícone no repertório material. Por fim, temos a intensidade, componente interpretativo que na relação de terceiridade, se configura como a genuinidade do hipoícone, ou seja, esse quase-signo marcado pela sua relação com o sujeito. É o componente do repertório material que se apresenta em relação aos outros elementos do repertório e que nesse trânsito entre os elementos constituintes, a intensidade é que se abre como componente interpretante do hipoícone.

O repertório tem naturalmente a função teórico-comunicativa ou teórico-criativa de um ‘emissor’ de uma ‘fonte’, o que significa, porém, que ele é seletível. Em geral, nenhum repertório é transposto completamente para o objeto-obra material. O objeto-obra é, na maioria das vezes, apenas uma ‘imagem’ material parcial do repertório, exatamente, uma seleção material.” (grifos do autor) (Bense, 1971, p.66)

Outro tipo de repertório referenciado por Max Bense (1971) é o repertório semantema que dialoga com o repertório material, mas no que se refere aos elementos constituintes do mesmo, sua principal característica é a abertura subjetiva que o próprio ícone pode propiciar para a posterior materialização sígnica, ou seja, a configuração do hipoícone. Esse repertório está relacionado ao público experienciador, uma vez que ele desenvolve-se a partir das relações de similaridade e idealização que se apresentam na obra subjetivamente e não fisicamente, mediado por elementos materiais. São sugestões das possibilidade de representação que, por sua vez, encontram-se totalmente dependentes da relação entre sujeito e obra que a experiência estética propicia.

Todo repertório de elementos, que podem ser entendidos como signos, é, primariamente, um repertório material, determinado por categorias de substância, forma e intensidade. Todavia, também pertencem ao repertório elementos ideais, não-materiais. Como justamente eles constituem a dimensão semântica, relevante para o interpretante, dos signos, ou dos super-signos, podemos denomina-los ‘semantemas’ e falar em repertórios semânticos.” (grifos do autor) (Bense, 1971, p.66)

A seleção hipoicônica erige-se da busca materialização do ideal supremo da estética (summun bonum). A seleção é, pois, a própria potência estética da composição artística, pois a concreção da obra teve anteriormente como suporte para materialização artística a potencialidade dos ícones disponíveis no repertório para sua seleção. Ou seja, é através da seleção hipoicônica que a potencialidade da obra aparece e é a partir da mesma que a concreção se realiza.

É importante observar, ainda, que a escolha dos elementos do repertório só se realiza através dos insights que o artista tem em relação à obra de arte, tal como evidencia Paulo Laurentiz. “Encontrar a similaridade de representação de cada sistema e os sentimentos promovidos pelo insight define a lógica do trabalho artístico.” (Laurentiz, 1991, p.113). Esclarecendo: inicialmente o artista tem um leque de possibilidades para confecção da sua obra, que é o seu repertório. A seleção dos elementos desse repertório se realiza através dos insights artísticos, formatando-se, assim, a seleção hipoicônica, uma vez que os ícones se degeneram, estando assim potencialmente aptos a se concretizarem completa e materialmente na composição artística.

Singularidade da obra

A segunda categoria de análise das obras de arte que procuramos evidenciar é a singularidade que toda e qualquer formatação de caráter artístico/estético apresenta. Se num primeiro instante da produção artística apresentamos a essencialidade de uma seleção material e semantema do repertório de composição da obra, num segundo momento essa seleção se articula, enquanto justaposição de hipoícones para finalmente compor a produção desejada. Essa articulação é, pois, um sistema de ação e reação entre os elementos selecionados e esse sistema é original e singular, na medida em que neste momento a materialização da obra de arte se torna evidente, tal qual apresentamos através das idéias de holarquia do pensamento artístico de Paulo Laurentiz.

“(...) o mérito de vir a representar algo encontra-se na confluência do insight com a materialidade expressiva do sistema produtivo utilizado, numa co-autoria que aproxima mente (insight) e matéria (a arte voltada para si, na pesquisa com os meios de produção).” (Laurentiz, 1991, p.128)

Pode-se entender, então, que a materialização da obra de arte só se dá a partir do momento em que suas potencialidades, imersas no repertório (seja material ou semântico) possam ser testadas e selecionadas na construção do caminho para a materialização do ideal estético. Tal caminho, porém, é único e singular, uma vez que todo e qualquer recorte é próprio, pois qualquer insight e potencialidade são próprios de cada artista e do tempo ao qual se filia. Sendo assim, toda e qualquer seleção é única e só se torna evidente no momento em que se concretiza, se torna material e acima de tudo singular.

A singularidade da obra é evidente no momento em que sujeito e obra entram em contato, numa relação experimental. Não importando, porém, o que essa relação venha provocar no sujeito, mas sendo predominante a reação do sujeito em relação às infinitas qualidades de sensação potentes na obra de arte. É exatamente esse choque entre sujeito e obra que dá suporte à experiência estética, sendo que: quão mais singular e original for a obra de arte, tão mais estética será experiência do sujeito. Essa relação de originalidade e estética está centrada nos pressupostos defendidos por Guattarri (1992), donde acredita que: “... a arte não detém o monopólio da criação, mas ela leva ao ponto extremo uma capacidade de invenção de coordenadas mutantes, de engendramento de qualidades de ser inéditas, jamais vistas, jamais pensadas.” (Guattarri, 1992, p.135)

Fica estabelecido então que a materialização (concreção) de uma obra de arte é por natureza singular e quão mais original, maior será a emanação dos signos estéticos (hipoícones). A produção artística singular se dá a partir da degeneração icônica (formatação do hipoícone) em relação ao seu repertório de seleção. A seleção, por sua vez, é parte integrante do processo de criação artística (mediada pelos insights) e de potência do ideal estético. No entanto, faz-se necessário evidenciar que não se dá aleatoriamente. São necessários alguns parâmetros, códigos, diretrizes para que a concreção do objeto artístico seja singular. Ou seja, a seleção hipoicônica tem uma rede de diretrizes (ainda que implícitos) para se tornar singular. Essa rede, são os códigos, as coordenadas para o estabelecimento do programa da arte que, por sua vez, é a poética da obra, a terceira das três categorias que aqui propomos.

Poética

A terceira das três categorias de análise aqui evidenciadas, em consonância com as categorias fenomenológicas de Charles Sanders Peirce, é a poética da obra de arte. Esse conceito foi discutido e voltamos aos seus parâmetros para fechar essa tríade de análise das obras de arte. Como discutido, a poética é todo o programa da arte, o código de formatação, os pressupostos de engendramento dos signos na composição artística. É a poética que irá colocar em diálogo o tempo da arte e as características do autor com a produção singular em questão. Não é uma camisa-de-força para o autor, porém toda e qualquer produção só se concretiza, só se materializa, só se torna singular, na medida em que obedece a determinadas lógicas de construção. Essas lógicas de construção são nada mais que o código da arte ou sua poética.

A poética é a forma da arte, o esqueleto artístico, é o desígnio de escolha dos elementos da seleção hipoicônica, através da qual os insights artísticos e potencialidades estéticas serão adaptados e recortados, respectivamente. É ela que fornece as diretrizes que a obra tem para se materializar, se concretizar enquanto trabalho singular e passível de experimentação. Nesse sentido, cabe à poética o papel de codificar o trabalho artístico, ou seja, é a partir da poética que os trabalho de fruição e interpretação se estabelecem na relação de experiência estética.

A obra de arte, através da dominância da função poética, ‘(...) tem a função de refletir sobre sua própria forma’ tornando o fruto dessa ação um potencial de representação ‘(...) em virtude dos caracteres que possui como objeto sensível, caracteres independentes da existência de algum objeto na natureza’ ” (Laurentiz, 1991, p.141)

É a poética, ainda, que está sob os desmandos do tempo e das transformações dos parâmetros de construção artística. A poética se articula ao tempo de composição das obras de arte. Estando em determinado tempo e emanando característica próprias de cada autor e da obra de arte, então a poética se configura como o programa que irá reger a composição artística, oferecendo pressupostos para que a obra se torne singular. Dessa forma, “...uma poética visa à construção de determinado objeto artístico, o qual se concretiza, de modo operativo (...) em sentido mais amplo este objeto é resultado de um projeto proposto com base em programas e ideais artísticos.” (Plaza & Tavares, 1998, p. 120).

Enquanto categoria de análise, a poética está em relação de terceiridade. Estando nessa relação e de acordo com as características aqui levantadas, entendemos a poética é a categoria que permite o desdobramento das obras em novas produções. Ou seja, toda e qualquer influência de obra ou de uma expressão em outra seguinte se dá a partir do programa artístico. Esse desdobramento é, pois, o processo de semiose da arte. A poética é o crescimento, é a continuidade do trabalho na arte em geral, uma vez que uma poética está aberta (podendo estar em aberto, sujeito a inferências imediatas em seu programa). Ainda em relação à terceiridade e reforçando caráter de regulamentação da obra, a partir do seu enquadramento no programa proposto, a poética está recoberta por símbolos – signos de caráter normativo.

A característica principal dos métodos a serem analisados é operar com símbolos ou signos de caráter convencional. Estes métodos se desenvolvem por meio da incorporação e conseqüente transformação de dados já existentes e repertoriados. Dão margem ao aparecimento de novas significações, envolvendo, assim, a relação de diálogo entre vários códigos e linguagens.” (Plaza & Tavares, 1998, p.112)

 Temos, por tanto, três requisitos de análise e conformação das obras de arte. Esses três requisitos de conformação e análise artística não são visualizáveis livremente, ao contrário, só podemos apreende-los em sua totalidade, ou seja, na medida em que eles se articulam para caracterizar a obra, enquanto tal. É importante salientar que essas categorias estão engendradas do modo da relação das categorias fenomenológicas de Peirce. Então, a seleção hipoicônica é um primeiro que oferece pressupostos para a singularização de uma obra que, por sua vez está adaptada ao programa poético da obra. Sendo assim, essas três categorias não podem ser aplicadas como casos isolados, mas de modo integrado na análise da composição (obra) na qual se aplica. Não podemos falar isoladamente da composição hipoicônica, da singularidade ou poética da obra separadamente, pois elas dialogam concomitante e ininterruptamente. Por isso, essas categorias não são modelos de enquadramento de um tipo de obra, mas um suporte para se discutir a composição artística a partir da experiência estética com a mesma.

Referências

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