Linha 174 Central – Gávea:
o seqüestro e a televisão
Eliana
Monteiro
Jornalista da TV Educativa do Rio de Janeiro
Mestranda da UFF- Universidade Federal Fluminense (em período de dissertação)
Professora de Jornalismo na Universidade Estácio de Sá
Resumo: Partimos de uma pesquisa empírica: o caso do seqüestro do ônibus da linha 174 Gávea-Central, ocorrido em junho de 2000, no bairro do Jardim Botânico, zona sul da cidade do Rio de Janeiro.O acontecimento foi transmitido simultaneamente num período de quatro horas para todo o país. Nossa análise mostra que a imagem exibida pela televisão desempenha um papel fundamental na constituição do imaginário do indivíduo contemporâneo em relação a sua cidade. Os acontecimentos modernos tornam-se encenações para a mídia: o seqüestrador constrói para a lente da câmera uma cena que poderia ser inserida em qualquer filme de ficção violento. O seqüestro do ônibus 174 pode ser considerado como nossa alegoria contemporânea, capaz de refletir as relações do indivíduo com seu tempo.
Agora, aqui, veja, é preciso correr o máximo que você puder para permanecer no mesmo lugar. Se quiser ir a algum outro lugar, deve correr pelo menos duas vezes mais depressa do que isso!
Lewis Carroll
Aqueles
que transitam no campo dos mídias de massas sabem o sentido dos termos tempo e
espaço. São termos que se referem a um processo que engendra uma estrutura
específica relativa a cada um dos veículos de massas .
Uma
observação: muito do que usarei nesta pesquisa tem como referencial minha
experiência profissional como jornalista especializada em televisão. A intenção
é manter unidas a experiência profissional e o trabalho intelectual na busca de
entender o acontecimento moderno, a nova narrativa jornalística, o
tempo, o espaço, a imagem e a cidade, elementos definidores deste
trabalho.
Buscamos
para fundamentar nossas questões as idéias de Walter Benjamin que chegam ao
século XXI cheias de vitalidade .Em Walter Benjamin buscamos alguns conceitos,
como os de alegoria e ruínas, que vão permear toda a nossa análise.
Partimos
de uma pesquisa empírica: o caso do seqüestro do ônibus da linha 174
Gávea-Central, ocorrido em junho de 2000 no bairro do Jardim Botânico, zona sul
da cidade do Rio de Janeiro. O acontecimento foi transmitido simultaneamente
num período de quatro horas para todo o país. Usamos este caso específico
porque ele nos fornece uma série de direções que pretendemos seguir em nossa
pesquisa. Uma das nossas indagações é a relação estabelecida entre a construção
da imagem em tempo real deste acontecimento exibido pela tv e os espaços
públicos da cidade. Interrogamos como esta imagem-pública é capaz de traçar uma
nova memória de cidade no indivíduo urbano.
Nosso
pressuposto é que a imagem exibida pela televisão desempenha papel fundamental
na constituição do imaginário do indivíduo contemporâneo em relação a sua
cidade. Lembremos que nossa pesquisa em relação à cidade não está baseada na
visibilidade da cidade a partir de suas edificações, nem numa invisibilidade
particular dos espaços públicos, que remetem a uma memória pessoal do
indivíduo,mas e ,principalmente, a uma cidade que se torna visível a partir das
imagens exibidas pela tv, responsável pela produção de cenas públicas
capazes de diferenciar os significados dos espaços públicos, alterando o
imaginário de seus moradores. Esta visibilidade (exacerbada) cria uma nova
dimensão da cidade, gerando uma certa ordem espacial, com novos sentidos
surgidos de uma narrativa imagética gerada pela televisão. Esta visibilidade
criada pela televisão traça um novo mapa, um novo texto sobre a cidade (não
mais escrito por seus moradores) da qual o indivíduo faz uma leitura imediata.
Esta nova cidade - a do acontecimento - surge desta nova topografia imagética,
que é apreendida pelo indivíduo e que acaba por abalar definitivamente o
conceito anterior e original dos espaços públicos, criando o que chamamos de imagem
marca, isto é, uma imagem que afeta a própria natureza do espaço fornecendo
novos valores simbólicos aos espaços da cidade que funcionam como elementos de
identificação, suscitando no indivíduo sentimentos dos mais contraditórios em
relação a estes espaços que vão de desgosto as vertigens da sedução. É criada
uma nova relação entre o indivíduo e a cidade, que perpassa pelo mundo
midiático. Deste modo o espaço público é subvertido pela imagem pública.
As
imagens exibidas pela tv reconstroem a cidade, ultrapassando as referências
individuais. Sabemos que a cidade está inscrita na disposição dos lugares nos
quais seus habitantes transitam e criam relações. Richard Sennet12 nos lembra que os romanos, após a conquista de uma nova cidade, a
reconstruíam, redefinindo seus espaços, suas dimensões e distâncias. Para os
romanos, era preciso diluir, da cidade conquistada ,o caráter particular de
seus espaços públicos. A cidade deveria ser reinterpretada na sua história após
a conquista. A cidade era então refeita nos seus símbolos urbanos a partir da
edificação de novos signos. Assim, como os romanos, a televisão se apodera da
cidade do acontecimento e a reconstrói, através da exibição de uma imagem
pública capaz de fornecer nova carga de significados a estes espaços. O
acontecimento moderno construído no tempo presente e simultâneo afeta o
espectador de maneira singular, levando-o a experimentar com esta nova imagem
um novo lugar que não é mais só o da testemunha; mais que isso, torna-o
co-participante do acontecimento - “a linguagem televisiva cria, no mínimo a
sensação de estar juntos”3 tirando-o da imobilidade, da mera recepção.
Lembremos que, horas após o desfecho do seqüestro do ônibus, foi iniciada uma
romaria: é preciso reunir, convergir ao lugar de origem das imagens, é preciso
fazer um novo reconhecimento do espaço público, que foi invadido pela imagem da
violência cotidiana da cidade. É preciso apreender este novo sentido dado ao
lugar do acontecimento. As imagens do acontecimento fazem com que o indivíduo
esqueça o tempo de antes, a esquina da rua Jardim Botânico, adquire uma nova
significação, ali passa a ser o lugar onde se deu o seqüestro do ônibus 174.
As
imagens do acontecimento constroem uma nova memória espacial a partir de uma
conexão estabelecida entre o espectador e a mídia. Paul Virílio chama de imagem
fática a imagem-alvo que força o olhar e prende a atenção. Este tipo de
imagem tem implicações definitivas na constituição do acontecimento, bem como
na construção da narrativa jornalística atual. Os acontecimentos modernos são
concebidos antes de tudo como encenações para a mídia. Umberto Eco observa que
até mesmo os cavalos da realeza britânica foram tratados com pílulas especiais
para que, durante a cerimônia de casamento do príncipe herdeiro, seu cocô
adquirisse uma cor fotogênica de modo a não chamar a atenção no vídeo4. Neste
caso, a realeza produziu previamente o acontecimento para se tornar um grande
espetáculo na tela da tv. No acontecimento que usamos como exemplo não houve
uma pré-produção para sua realização;o acontecimento foi se apresentado no seu
enunciado; no entanto, tanto um quanto o outro, inseriram a imagem da televisão
de forma significante. Ao usarmos o conceito de imagem fática de Virilio,
queremos enfatizar que esta imagem intensifica os detalhes do acontecimento
que, na contemporaneidade ,é preciso estar em foco para existir, e que é nesta
nova maneira de focar (fragmentada) que é construída a narrativa jornalística
atual. No acontecimento que usamos como exemplo, o seqüestro do ônibus 174 no
Rio de janeiro que mereceu uma transmissão simultânea de quatro horas para todo
o país, fica evidente que todas as ações se dão voltadas para as lentes das
câmeras: é o espaço da cena, o local iluminado onde tudo deve acontecer.
A
outra lateral do ônibus, pela qual poderiam ter sido desencadeadas algumas
ações (como, por exemplo, a fuga de alguns dos passageiros), passa a não
existir.
Onde
não há luz não há ações.
O
seqüestrador sabe disso e estabelece,desde o início, uma relação com a lente:
ele precisa estar em foco, ele só existe aí, neste lugar da imagem. Como um
grande encenador Sandro produz e traduz o acontecimento em espetáculo
para a tv.
O
acontecimento exibido em tempo real, no presente simultâneo, tem como
característica a imprevisibilidade, não há como prever (nem os profissionais
envolvidos na transmissão, nem os espectadores) a próxima cena. Deste modo, as
ações são sobrepostas, múltiplas: um homem pula pela janela do ônibus, uma
mulher mantida como refém escreve com batom uma mensagem no vidro de outra
janela. Todas estas ações se dão no espaço televisivo, no campo de visão.
Onde
há luz é possível o foco.
Quando
o seqüestrador (Sandro) fecha as janelas do ônibus, estão suspensas as ações. A
televisão cai num tempo que Arlindo Machado nomeia de tempos vazios, tempos-mortos,
a câmera vaga pelo espaço procurando preencher este tempo com imagens
periféricas.
Para
analisarmos este acontecimento recorremos ao conceito de alegoria de
Walter Benjamin , segundo ele ,a alegoria nos é imposta pelas condições
históricas em que nos encontramos; somos sobreviventes de uma destruição paulatina
de todos os grandes valores antigos, que foram aviltados e transformados em
escombros pela mercantilização da vida5. O seqüestro do ônibus
174-central-gávea- é nossa alegoria contemporânea capaz de refletir as relações
do indivíduo com seu tempo.
Este
acontecimento exibido na tela da televisão engendra uma nova temporalidade,
surgida de um novo fluxo do tempo incessante do acontecimento: a velocidade.
É a partir dela que o acontecimento contemporâneo ganha uma nova dimensão. É
preciso perceber que a aceleração do tempo, na construção do acontecimento,
estabelece uma nova relação entre a informação e o espectador; a cada instante
há uma alternância entre o que é e o quer acaba de deixar de ser, é um
movimento (e a televisão é a técnica do movimento), de construção e destruição
do que esta sendo enunciado na tela da tv.
Este
binômio construção/destruição é o que fundamenta a narrativa jornalística atual
porque sinaliza uma nova dinâmica na interpretação do mundo: nada é retido,
tudo é diluído. Neste sentido a construção e a destruição do acontecimento no
tempo seriam duas faces da mesma moeda da qual a ruína é o seu símbolo.
A ruína seria fundadora de uma narrativa jornalística que num primeiro momento
pareceria estar fundamentada não no acontecimento em si, mas nos seus
indicativos (aquilo que dá indícios do que aconteceu), o que estamos dizendo é
que a narrativa no jornalismo contemporâneo apesar de ser constituída no tempo
real seria construída não no tempo presente, mas num tempo que exatamente por
sua instantâneidade, torna-se passado: um passado recente. A narrativa
jornalística reconstitui a cena, tal qual a cena de um crime que é
reconstituída a partir de seus indícios. Para Benjamin escavar é recordar e o
jornalismo atual faz isto.
O
jornalismo se situa numa tensão entre o mundo e o tempo e faz com que os
acontecimentos ganhem sentido pela sua apropriação e interpretação, a ele é
dada a autoridade de formar opiniões criando uma representação do mundo6. Qual
representação de mundo o jornalismo é capaz de construir, se o mundo não se
deixa mais apreender?
Ainda
sobre a questão do tempo queremos ressaltar que a analise do seqüestro do
ônibus 174 será tratada por nós no limiar dos tempos real e fictício. O
seqüestrador faz com que o lugar da cena seja o espaço da representação, do
espetáculo, da simulação. Daniel Dayan7 lembra que o fictício trabalha com a
crença coletiva, Sandro parece que sabe disso: em determinado momento ele finge
que mata e uma das reféns finge que morre diante da lente da câmera. Ele
constrói uma cena que poderia ser inserida em qualquer filme violento de
ficção. A produção do fictício é também enfatizada pelo uso de efeitos
especiais (repetição das imagens, slow motion, fusão, etc). O tempo real
rompe com este tempo ficcional quando o seqüestrador mata e morre. Há uma
ruptura no tempo ficcional até então determinante nas ações do seqüestrador ,
esta ruptura é provocada por uma ação externa : o policial atira. A professora
Geysa morre.
Para
o historiador Pierre Vilar a história não seria um produto do tempo, mas ao
contrário, o tempo seria um produto da história, ou seja, as relações sociais
no seio das estruturas criariam apropriações diferenciadas do tempo8. Na nossa
pesquisa fica evidente que o tempo foi percebido e vivenciado de maneira
diferente tanto pelo seqüestrador, quanto pela polícia e pelo espectador.
Existia uma temporalidade interna (dentro do ônibus) uma outra
temporalidade externa (fora do ônibus) e uma terceira : a do
espectador; mediada pela imagem exibida na tela da tv. Esta última provoca
uma ruptura no tempo cotidiano do espectador, e o transporta para a
temporalidade da transmissão ao vivo, ou seja, a coincidência da ocorrência do
fato com sua transmissão9 produzindo uma sensação de um tempo curto, que passa
depressa. Estas imagens que passam depressa produzem uma falta de nitidez a
qual chamamos de embaçamento . A imagem em tempo real cria no espectador
a sensação de onipresença – aquele que tudo vê –o desenrolar do acontecimento
está ali, diante de seus olhos, na tela da tv. Por outro lado, a aceleração do
tempo na produção desta imagem gera nos olhos do espectador uma confusão do
olhar. Não há tempo para a fixação, nada pode ser retido.
Há
algo oculto no embaçamento.
No
artigo publicado em junho de 2000 no jornal Folha de São Paulo intitulado “Guga
poderia virar um assassino?” Girberto Dimenstein traça um paralelo entre Guga e
Sandro naquela segunda – feira. Ambos foram acompanhados pela tela da tv minuto
a minuto, em tempo real, seja na quadra de tênis ou no ônibus. Diz ele: “Um
deles branco, 23 anos ganhou fama com uma raquete na mão. Outro negro, 22 anos
ganhou fama com um revolver na mão. Gustavo Kuerten, cercado de fãs, deixava-se
fotografar em frente á Torre Eiffel com o troféu que recebeu no torneio de
Roland Garros, que o deixou seiscentos mil dólares mais rico. Neste mesmo dia
Sandro do Nascimento, cercado de policiais, depois de um atabalhoado seqüestro,
era jogado num camburão, onde morreu sufocado- ele queria mil reais. Cada qual
em seu palco, conectados pela tv. Pelo seu jeito desengonçado, Guga não
inspirava confiança, quando transforma-se em campeão e rompe a barreira do
anonimato. Sandro nunca inspirou confiança, rompe a barreira do anonimato
quando seqüestra mata e é assassinado.”
A
televisão não trabalha com a correspondência entre os acontecimentos e o mundo
de cada um dos personagens: o jogo de tênis, o sequestro do ônibus, e o
contexto do qual emergem Guga e Sandro, como faz Dimenstein. A televisão
naturaliza as diferenças, ela opera de modo indicial: indica o acontecimento,
mas o isola, não construindo relações. É preciso identificar os mecanismos da
televisão para entender suas estratégias. É a (única ) salvação de quem
sobreviveu a tormenta1.
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Notas
1 Sennet,R. Carne e Pedra – O corpo e a cidade na civilização ocidental, Rio: Record, 2001, p.160 ss.
2 Freire,C. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo, S.Paulo: SESC/Annablume, 1997. p. 305.
3 Van Tilburg, J.L. “O telespectador e a rela;áo espaço-tempo uma questáo epistemológica” in A Encenação dos Sentidos, Rio: Diadorim, 1995, p.207.
4 Machado, A. A arte do vídeo S.Paulo: Brasiliense, 1988, p. 87.
5 Ver Konder,L. Walter Benjamin – O marxismo da melancolia, Rio: Campus, 1988, p. 28.
6 Barbosa,M. “Temporalidade: uma questão mediática”, in Margem n.9 – junho de 1999.
7 Ver Dayan,D. e Katz,E. “Rituais públicos para uso privado (metamorfose televisionada de um casamento real)” in Annalles: écononies, sociètès, civilisations. Paris,n.1. p3-20, jan./fev.1983.
8 Barbosa,M. “O tempo da história e o tempo dos ‘outros’” , mimeo.
9 Van Tilburg, J.L. op.cit. p. 205.